CRISTIANISMO E O APOIO INCONDICONAL A HITLER








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ÍNDICE


003   Introdução

004   1. O grupo religioso Testemunhas de Jeová
005   1.1 Origem do grupo e primeiras doutrinas
006   1.2 Desenvolvimento e conformação até a posse do Partido Nazista
007   1.3 Doutrinas fundamentais das Testemunhas de Jeová

008   2. O contexto religioso na Alemanha nazista
009   2.1 Desenvolvimento da ideologia nazista 
010   2.2 O Nazismo como religião 
011   2.3 A Igreja Protestante e o Nazismo
012   2.4 A Igreja Católica e o Nazismo
013   2.5 Grupos religiosos menores 
014   2.5.1 A Igreja de Cristo, Cientista
015   2.5.2 A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias 
016   2.5.3 A Igreja Adventista

017   3. A materialização do conflito ideológico

018   Conclusão 
019   Apêndices
020   1. Cronologia dos acontecimentos na Alemanha 
021   2. As Testemunhas de Jeová no Brasil 

 Anexos... Acesso aqui
1. Declaração dos Fatos... Acesso aqui
2. Publicações que denunciavam as práticas nazistas... Acesso aqui

Referências Bibliográficas... Acesso aqui 
Bibliografia... Acesso aqui 


 




As Testemunhas de Jeová e o Regime Nazista: uma análise das causas ideológicas do conflito




PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Marco Antonio Simões
As Testemunhas de Jeová e o Regime Nazista: uma análise das causas ideológicas do conflito
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
São Paulo
2016


DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de  São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais sob orientação da Profa. Dra. Maria Helena Villas Boas Concone 
São Paulo
2016

Banca Examinadora
_______________________________________________________ _______________________________________________________ 

Dedico esse trabalho à memória da minha mãe.

Agradecimento

Várias pessoas tornaram possível a realização deste trabalho, e a menção feita aqui não é suficiente para expressar a importância que tiveram. Ainda assim, faço registrar minha imensa gratidão à minha orientadora, Profa. Dra. Maria Helena Villas Boas Concone, que com sua sabedoria e gentileza forneceu as indicações que deram o formato a essa pesquisa.

Agradeço sinceramente aos meus professores da PUC-SP, por suas valiosas contribuições à minha formação. Todos, em alguma medida, estão presentes nesse trabalho: Prof. Dr. Rinaldo Sérgio Vieira Arruda, Antropologia; a Profa. Dra. Maura Pardini Bicudo Veras, Sociologia e Alteridade; Profa. Dra. Teresinha Bernardo, Circuitos Religiosos e Memória; Profa. Dra. Leila Maria da Silva Blass, Seminário de Pesquisa; Prof. Dr. Silas Guerriero, Novas Religiões, Novas Espiritualidades, a quem agradeço inclusive pelas excelentes sugestões quando da qualificação deste trabalho.

Recebi também a ajuda inestimável, como em todos projetos da minha vida, de minha esposa, Maria Alice, e agradeço a ela e à minha filha Ângela por colaborarem nas muitas horas em que tive que me ausentar de seu convívio para dedicar-me a esta pesquisa, e por me incentivarem sempre, especialmente diante do desafio emocional que ela representou. Aos que fizeram a leitura atenta dos manuscritos e contribuíram com sugestões importantes, em particular meu sobrinho Vinícius, registro minha gratidão. Recebi a colaboração de algumas pessoas que solicitaram permanecer anônimas, solicitação respeitada aqui, mas que saberão de minha gratidão também.

Finalmente, agradeço àqueles de quem conheci as histórias, os medos, as dúvidas, a coragem, a fé. Convivi com eles nesses anos, e é quase como se os tivesse conhecido pessoalmente. Foi um privilégio. Que bom seria se seus acertos, e seus erros, fossem sempre ouvidos, para que histórias como as deles não tenham que ser contadas no futuro.

“... a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti".
John Donne

Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar o confronto ocorrido entre o Partido Nazista alemão e o grupo religioso Testemunhas de Jeová, chamados na época de Bibelforschers (Estudantes da Bíblia). O grupo posicionou-se ideologicamente contra as propostas do Partido Nazista, e o fez de maneira inflexível, a ponto de se tornar alvo de uma perseguição de intensidade proporcionalmente superior aos demais grupos religiosos perseguidos ou banidos pelo Regime, como será demonstrado. A pesquisa examinará o surgimento e desenvolvimento do grupo, com ênfase na constituição das doutrinas que possibilitaram o confronto. Também examinará o desenvolvimento da ideologia nazista, nos aspectos em que se opôs à posição manifesta pelo grupo. Sobre o partido nazista, ainda será feita uma análise como ele mesmo sendo uma religião. Estratégias de sobrevivência de outros grupos também serão estudadas como parâmetro de contextualização. Por fim, alguns fatos ilustrativos do conflito propriamente serão apresentados e analisados, como demonstração da materialização do embate ideológico. Embora as Testemunhas de Jeová tenham sido objeto de estudo sob outros aspectos, é possível constatar que o embate deste grupo com o Partido Nazista tem sido pouco abordado no Brasil, talvez devido a tratar-se de um grupo pequeno na Alemanha no período tratado nesta pesquisa. Ainda que o seja por vezes, o aspecto considerado é eminentemente histórico. O propósito deste trabalho é identificar e analisar as causas ideológicas do conflito.

Palavras-chave: Testemunhas de Jeová, Bibelforscher, nazismo, conflito ideológico, Estudantes da Bíblia, Holocausto, Terceiro Reich

Abstract
The objective of this paper is to analyze the confrontation occurred between the German Nazi Party and the religious group Jehovah's Witnesses, called at the time Bibelforschers (Bible Students). The group has positioned itself ideologically against the Nazi Party's proposals, and did so adamantly, that became the subject of an intensity of persecution proportionally higher than the other persecuted religious groups and banned by the regime, as will be shown. The research will examine the emergence and development of the group, emphasizing the establishment of the doctrines that made possible confrontation. Also it will examine the development of Nazi ideology in ways that opposed the position expressed by the group. About the Nazi party, it will still be analyzed as he himself being a religion. The strategies for survival adopted by other groups will also be studied for contextualization purposes. Finally, some illustrative facts of the conflict itself will be presented and analyzed, as a demonstration of the materialization of the ideological conflict. Although Jehovah's Witnesses have been studied in other ways, it is possible to see that the conflict of this group with the Nazi Party has been little studied in Brazil, perhaps because of being a small group in Germany in the period treated by this research. And when mentioned, it is usually under an aspect eminently historic. The purpose of this work is to identify the ideological causes of the conflict.

Keywords: Jehovah's Witnesses, Bibelforscher, Nazism, ideological conflict, Bible Students, Holocaust, Third Reich



3<<< >>> ÍNDICE     


Introdução 

OBJETIVOS DESTA PESQUISA

  1. Esse estudo examinará as causas ideológicas do confronto entre o Partido Nazista e a organização religiosa Testemunhas de Jeová

  2. e demonstrará que das entidades religiosas atuantes na Alemanha nazista, as Testemunhas de Jeová foram percebidas pelo Partido como uma ameaça especial,

  3. e foram, desde o princípio, alvo de perseguição intensa com o objetivo de sua completa eliminação,

  4. objetivo que teve seu clímax no conjunto de ações que veio a ser conhecido como o Holocausto.

  5. Um resgate histórico deste embate será feito em certa medida, com o objetivo de evidenciar as principais concepções de ambos os lados que não somente possibilitaram, mas tornaram o conflito inevitável.

  6. Será realizado também um exame do contexto religioso e das posições adotadas por outras denominações religiosas com o fim de justificar a proposta de demonstração.

  7. Uma abordagem história detalhada está além do escopo dessa pesquisa, mas seria um tema interessante, dada à pouca literatura disponível em português.



  1. Visto tratar-se de um grupo bastante pequeno em relação a outros grupos afetados, notadamente os judeus, cuja cifra chegou a milhões, o conflito entre as Testemunhas de Jeová e o Estado durante o Terceiro Reich alemão poucas vezes tem sido objeto de estudo, estando elas, na expressão do historiador Detlef Garbe, entre as “vítimas esquecidas do nazismo”. (GARBE, 2008, p. 3)

  2. Durante o período analisado nesse trabalho, a Alemanha contava com cerca de sessenta e cinco milhões de habitantes, sendo que destes entre vinte e vinte e cinco mil eram Testemunhas de Jeová, ou seja, uma proporção bastante pequena de cerca de 0,04% da população.

  3.  Apesar de numericamente tão pequeno, o grupo demonstrou sua convicção ideológica contrária aos ideais nazistas mesmo em face da perda de valores e direitos universais como a liberdade, a família e a integridade física, para não mencionar a extrema violência a que foi submetido.

  4. Quase a totalidade dos membros foi afetada de algum modo, sendo que, praticamente a metade do grupo foi preso ou torturado nos campos de concentração.

  5. Dois mil e quinhentos morreram devido à violência ou privações, e 253 foram executados. Cerca de 800 crianças, filhos de Testemunhas de Jeová, foram afastadas de suas famílias e enviadas quer a reformatórios, quer a outras famílias. (HESSE, 2001, p. 251)

  1. As ações do partido nazista no sentido de calar seus oponentes tiveram seu auge no Holocausto, um dos maiores e mais devastadores golpes de toda a história contra a humanidade civilizada.

  2. Ele atingiu um grande número de diferentes grupos, cujas vítimas sofreram, conforme preconizado pelo prof. Joseph Conway:
    (1) pelo que eram, como os judeus, ciganos, homossexuais e deficientes,
     (2) pelo que fizeram, como os ativistas políticos e soldados inimigos, e
    (3) pelo que se recusaram a fazer, como as Testemunhas de Jeová e outros grupos religiosos – ou membros individuais desses grupos. (HESSE, 2001, p. 9)

  3. No auge da repressão que sofreu durante o regime nazista, o grupo foi chamado pelo ditador Adolf Hitler de ‘raça a ser exterminada’. (PENTON, 2004, p. 167) Ludwig Wurm, membro da SS e testemunha ocular dessa ocasião relata em sua biografia:

Daí veio a Anschluss, ou anexação, da Áustria à Alemanha, em 1938, e o partido nazista tornou-se legal. Pouco depois eu estava entre os membros leais do partido convidados por Hitler, naquele mesmo ano, para assistir ao anual comício monstro do partido do Reich, no Campo Zeppelin, em Nuremberg. Ali eu vi Hitler exibir o seu crescente poder. Seus discursos bombásticos, que enfeitiçavam a assistência, eram cheios de ódio contra todos os opositores do partido nazista, incluindo os judeus de todo o mundo e os Estudantes Internacionais da Bíblia, hoje conhecidos como Testemunhas de Jeová. Lembro-me claramente de sua jactância: “Este inimigo da Grande Alemanha, essa raça de Estudantes Internacionais da Bíblia, será exterminada da Alemanha.” Eu não conhecia nenhuma Testemunha de Jeová, de modo que me indagava quem seria essa gente tão perigosa à qual ele se referia com tanto rancor. (WURM, 1990, p. 12) Grifo do autor




  1. Além disso, o Holocausto foi, essencialmente, uma manifestação brutal do poder e da organização totalitária do estado germânico.

  2.  A força desse estado dependia ou se apoiava também, na construção de uma identidade germânica, profundamente abalada com a derrota na Primeira Guerra Mundial, e com as sanções impostas pelo Tratado de Versalhes.

  3. Quaisquer manifestações, voluntárias ou não, contrárias a essa identidade foram reprimidas ou se tornaram alvo de destruição.

  4. Não obstante, vale aqui ressaltar que reiteradas vezes a própria existência do Holocausto, ou pelo menos sua extensão, tem sido questionada de forma mais ou menos explícita, ainda que poucas décadas tenham se passado desde sua ocorrência. (MONIZ, 2003)

  5. Um dos maiores influenciadores desse movimento, chamado ‘revisionista’ foi o historiador francês Paul Rasinier (1906 – 1967).

  6. Suas obras conquistaram muitos leitores na Europa, e foram traduzidas nos EUA pelo historiador Harry Elmer Barnes, também revisionista.

  7. No Brasil, o empresário Siegfried Ellwanger Castan é autor de vários livros nos quais nega o Holocausto, sendo que, para ele, a documentação histórica que o demonstra seria uma tentativa de ‘enganar a humanidade’. (CASTAN, 1988, p. 12)

  8. As propostas desses autores e simpatizantes, aliadas à rápida propagação de suas ideias através da Internet e das redes sociais, têm sido uma das fontes de inspiração para grupos que buscam restaurar os ideais nazistas, ou seja, grupos neonazistas.

  9. Somente na Alemanha, cerca de 180 pessoas foram mortas por grupos de extrema direita.

  10. Conforme explica o jornalista Eduardo Szklars, “muitos neonazistas não falam em ‘pureza racial’, mas em ‘pureza cultural’.

  11. E não só perseguem judeus, gays ou Testemunhas de Jeová, mas também imigrantes, muçulmanos, negros, pobres ou qualquer outra minoria que ameace sua identidade ‘superior’”. (SZKLARZ, 2014, p. 228)

  12. onforme alerta Maria Luiza Tucci Carneiro, historiadora e pesquisadora do tema:
Atualmente, testemunhamos jovens neonazistas (skinheads) e representantes políticos de grupos de extrema direita voltando a bradar por Hitler, empunhando a suástica tatuada e proferindo slogans racistas que pregam a morte aos judeus, negros, prostitutas, homossexuais e outras minorias. Pelo visto, nem todos aprenderam a lição. Muitos nem sequer conhecem as verdadeiras dimensões do que foi o nazismo ou as consequências das absurdas teorias racistas de Adolf Hitler e seus seguidores para a humanidade. (CARNEIRO, 2005, p. 7)


O NEONAZISMO SE MANTÉM VIVO E ATUANTE NO MUNDO

  1. Conforme a antropóloga Solange Couceiro de Lima, vários grupos no Brasil têm sido influenciados também pelo xenofobismo que está acontecendo na Europa. (LIMA, 2006)

  2. Em 1991 a militância neonazista na Alemanha já ultrapassava os 40 mil membros. (WEIL; GAUTIER, 1994, p. 282)

  3. No Brasil, conforme um estudo sobre o neonazismo feito pelo Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinquente, em 1999 existiam cerca de 30 gangues que professavam ideais nazistas. (PINSKY; PINSKY, 2004)

  4. Vários desses grupos aparecem com frequência na mídia, como responsáveis por espancamentos de negros e homossexuais.

  5. Do ponto de vista ideológico, é emblemático para esta pesquisa um caso ocorrido em 20 de abril de 1996, quando um dos grupos neonazistas de São Paulo, o UNB – Único Nacionalista Brasileiro, promoveu a distribuição de um panfleto antissemita na Av. Paulista, região central de São Paulo, SP, descrevendo Hitler como o “Messias Salvador da Humanidade”, tendo sido levado ao suicídio pelos “maléficos seres sionistas, que inventaram um falso massacre de seis milhões de judeus.” (KAHN, 1999, pp. 73, 94) 

  6. Ainda que não levado a esse extremo, para as gerações mais recentes parece haver um recrudescimento da importância e significado do totalitarismo exercido durante o Terceiro Reich, ou, pior ainda, conforme o Dr. Efrain Zuroff, apesar da crescente disponibilidade de material histórico, há “uma falha em aprender as lições necessárias daquele trágico período”. (ZUROFF, 2014)

  7. Como alerta Bauman “mesmo que seu choque [o do Holocausto, n. do a.] tenha sido único e exigisse uma rara combinação de circunstâncias, os fatores que se reuniram nesse encontro eram, e ainda são, onipresentes e ‘normais’.

  8.  Não se fez o suficiente depois do Holocausto para sondar o potencial medonho desses fatores e menos ainda para impedir seus efeitos potencialmente aterradores”. (BAUMAN, 1998, p. 16) 

  9. Ao mesmo tempo, o avanço da globalização coloca as sociedades cada vez mais em  contato com diferentes culturas, desafiando a capacidade de  tolerância e convívio com  ideologias divergentes.  

  10. Por essas razões, o estudo da experiência de uma minoria de ideologia diferente da  estrutura vigente de poder, minoria essa que resistiu às tentativas de renúncia de suas  convicções, e,  por  fim,  de extermínio, justifica-se  por  poder lançar luz a  caminhos  que  impeçam a repetição de ações de intolerância que violem os direitos e valores naturais  superiores da ética humana.

  11. O objetivo do trabalho será identificar e examinar as razões  que levaram ao confronto,  tanto por parte do grupo afetado, as Testemunhas de  Jeová,  como por parte dos representantes do estado nazista.  




A ESTRUTURA DO CONTEÚDO DESTA PESQUISA CIENTÍFICA:


• Capítulo 1 – O grupo Religioso Testemunhas de Jeová: abordará as origens históricas do grupo, sua constituição e primeiros desenvolvimentos, assim como seu contexto social. A seguir será examinado o desenvolvimento ideológico do grupo e sua expansão. Também será feita uma apresentação do estabelecimento do grupo na Europa, em especial nos países nos quais ocorreram os principais confrontos ideológicos. Por fim o estudo examinará as doutrinas fundamentais das Testemunhas de Jeová, assunto de especial relevância para a compreensão do surgimento do conflito entre o grupo e o estado.

• Capítulo 2 – O contexto religioso na Alemanha nazista: será estudado aqui o ponto de vista nazista sobre a religião, e o próprio nazismo como religião. Qual deveria ser o papel da religião, segundo os preceitos nazistas, e quais seriam os potenciais riscos para o estado nazista que poderiam ter origem nela. Serão identificados aqui também os preceitos filosóficos do partido que estiveram na origem do conflito e na tentativa de supressão do grupo em análise, assim como de outros. Nesse capítulo serão também apresentados alguns destaques de critérios e ações de outros grupos religiosos, a saber, os dois majoritários, católicos e protestantes, e alguns menores mais representativos, com o fim de ajudar na compreensão do fato de que, ainda em comparação com esses, as Testemunhas de Jeová foram tratadas de modo especialmente opressiva.

• Capítulo 3 – O conflito ideológico: com base nos levantamentos dos capítulos anteriores, este capítulo analisará alguns fatos históricos que evidenciaram as consequência das diferenças ideológicas entre o estado nazista e as Testemunhas de Jeová.

A metodologia da pesquisa consistirá, além da revisão bibliográfica, no resgate e pesquisa de documentos históricos da entidade jurídica representante do grupo e outros disponíveis.



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1. O grupo religioso Testemunhas de Jeová 

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1.1 Origem do grupo e primeiras doutrinas 


O CRISTIANISMO ATÉ O SÉCULO 19
  1. O cristianismo, cujas sementes foram lançadas no início do primeiro século de nossa era, foi uma força organizadora do mundo ocidental de extrema importância durante cerca de 1500 anos.

  2. A partir do final do século XVI, com o Renascimento, porém, esse mundo “começou a encontrar novas fontes de inspiração para si no ideal do progresso”. (DAWSON, 2010, p. 103)

  3. A fé na razão e na capacidade de compreensão do homem e sua responsabilidade pelo seu próprio destino passaram a nortear os desenvolvimentos sociais, que encontraram nos ideais Iluministas e na Revolução Francesa algumas de suas expressões mais eloquentes. (CASTRO, 2004)

  4. Esses desenvolvimentos situam-se na origem de muitos dos acontecimentos do século XIX.

  5. A humanidade entrava no período do maior desenvolvimento da manufatura, dos transportes rápidos e dos meios de comunicação de toda a História.

  6.  O aperfeiçoamento da máquina a vapor por James Watt (1736-1819) no final do século anterior contribuiu decisivamente para o avanço da Revolução Industrial, que, por sua vez, ocasionou profundas transformações sociais,

  7. entre outras, a migração da população campesina para as metrópoles, e o surgimento do fenômeno ‘multidão’.

  8. A locomotiva a vapor levou à expansão das ferrovias, que passaram a cruzar países e continentes.

  9.  O telefone (1876), o fonógrafo (1877), a luz elétrica (1879) e o linotipo (1884), vieram a juntar-se ao exército de invenções que pareciam colocar nas mãos do homem a completa responsabilidade por seu destino.

  10. Nesse ambiente, a religião esteve no centro das investigações dos fundadores da Sociologia, contemporâneos a esses desenvolvimentos.

  11. Auguste Comte (1798-1857), o pai do positivismo, propunha que a ciência e a ordem eram os fatores determinantes para o avanço sociocultural e econômico, em detrimento da religião, à qual ele relegava a uma fase pré-modernista da sociedade. (MARIANO, 2013, p. 233)

  12. Em seu conceito, a história da humanidade pode ser dividida em três estados progressivos: teológico, metafísico e positivo.

  13.  A religião seria uma característica ligada ao primeiro estado, e seria inteiramente superada na sociedade futura e moderna. (HOCK, 2010, p. 102)

  14. Émile Durkheim (1858-1917), buscando analisar a essência do sentimento religioso, por um lado entende que a ciência contesta a posição da religião como detentora da autoridade sobre a produção do conhecimento, mas, por outro lado não pode impedir que os homens atuem sob a autoridade de uma fé religiosa, já que o aspecto sagrado, para ele, é inerente à índole humana, “que não pode amar e honrar conjuntamente nada além dele próprio”. (WILLAIME, 2012, p. 36)

  15. Conforme explica Silas Guerriero, (2013, p. 249) este sentimento religioso, porém, vem da ideia do sagrado em oposição ao profano, e não do reconhecimento da presença de seres espirituais ou sobrenaturais, conforme postulado por Edward B. Tylor (1832-1917). (HOCK, 2010, p. 23)

  16. Durkheim vê, portanto, a religião puramente como uma construção social, em que, as religiões tradicionais teriam seu papel normativo corroído pelo crescente individualismo. (MARIANO, 2013, p. 234)

  17. Conforme ele explica: “Se a religião engendrou tudo o que há de essencial na sociedade, é que a ideia da sociedade é a alma da religião.

  18.  As forças religiosas, são, portanto, forças humanas, forças morais”. (DURKHEIM, 1996, p. 462)

  19. Weber, por sua vez, busca demonstrar em sua obra que o protestantismo, em suas principais derivações, a saber, o calvinismo, o pietismo, o metodismo e as seitas anabatistas, repetiam, em maior ou menor grau, o discurso do “espírito capitalista”, para cuja definição ele utiliza do discurso de Benjamin Franklin, em “Retrato da Cultura Americana”. (WEBER, 2004, pp. 42, 82–167)

  20. Assim, em sua leitura, a religião teria um papel fundamentalmente utilitário, o qual, junto com o avanço da ciência, resultaria em seu desencantamento e perda de seu valor cultural. (MARIANO, 2013, p. 234)

  21. É certo que esses conceitos seriam ampliados e aprofundados, mas são citados muito sumariamente aqui para contextualizar sociologicamente o surgimento do grupo em estudo.

  22. No âmbito político e econômico, o marxismo contribuía com a confirmação dessa tendência de considerar a religião como um fenômeno obsoleto, “incompatível com as sociedades voltadas para o progresso econômico e social”. (WILLAIME, 2012, p. 145)

  23. De modo muito consistente com esse contexto, foi em 1848 que Karl Marx e Friedrich Engels publicaram O Manifesto Comunista, propondo um rompimento da dominação burguesa capitalista, para eles apoiada e alimentada pela religião.

  24.  É nessa abordagem que se insere a metáfora da religião como “ópio do povo”, declaração que consta em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1844. (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 23).

  25. É desse período também a publicação da obra A Origem das Espécies (1859), de Charles Darwin (1809-1882), que influenciou profundamente o ambiente científico e religioso da época, como mais um elemento a afastar o homem da necessidade do divino e a secularizar as igrejas tradicionais. (NORRIS; INGLEHART, 2004, p. 8)



PREDIÇÕES PARA A VOLTA DE JESUS

  1. Paralelamente a esses desenvolvimentos, porém, vários grupos buscavam um retorno aos valores espirituais. (ALBANESE, 2002, p. 19)

  2. Jean-Paul Williame (2012, p. 26) cita Alexis Tocqueville (1805-1859) inclusive ressaltando “o importante papel exercido pela religião na formação e no desenvolvimento da democracia nesse país [EUA]” (=lembrando que pela fé, usando a religião, os cristãos praticaram genocídio e tomaram as riquezas e propriedades dos índios) , e que ele, Tocqueville, “ficou admirado pela vitalidade religiosa (=capitalista)  que se manifestava na sociedade norte-americana, que vai de encontro aos que afirmavam que o advento da sociedade democrática moderna conduziria ao recuo da religião”.

  3. De fato, o século XIX foi palco do surgimento de vários grupos religiosos, que com o tempo se consolidaram como religiões, no que, na opinião do historiador William G. Mcloughlin, constituiriam ciclos de avivamento.

  4.  Na opinião desse autor, o que ele chamou de “Terceiro Grande Avivamento” (1890-1920), foi uma resposta racional ao cenário evolucionista da época. (MCGOWAN, 1980, p. 114) (=vaidade e misticismo misturado com preconceitos, intolerâncias e prepotências do cristianismo)

  5. Assim, vários grupos com interesses religiosos comuns são formados nessa época, como os Adventistas do Sétimo Dia, a Igreja de Jesus Cristo do Santos dos Últimos Dias, a Igreja de Cristo Cientista, e as Testemunhas de Jeová, entre outras.

  6. Um dos temas de particular interesse desses grupos eram as profecias messiânicas referentes à volta de Cristo e ao fim do mundo.

  7. Assim,
    ... (1) William Miller (1782- 1849), pioneiro do desenvolvimento adventista, com base no livro bíblico de Daniel, previu o retorno de Cristo para 1843, corrigindo-o depois 1844 (COLLINS, 2005, p. 412),
    ... (2) o teólogo alemão J. A. Bengel para 1836,
    ... (3) Edward Irving (1792-1834), baseado em cujos ensinos fundou-se posteriormente a Igreja Católica Apostólica, para 1864,
    ... (4) e menonitas russos para 1889 e depois para 1891,
    ... (5) e as Testemunhas de Jeová para 1874. (TRATADOS, 1993, p. 40) (BARBOUR; RUSSELL, 1877, p. 125)



HISTÓRIA DOS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E SEU FUNDADOR

Ainda que essas predições, obviamente, não tenham se cumprido, é possível relacioná-las a uma preocupação com um reavivamento dos valores espirituais, em detrimento do materialismo presente nas novas consecuções científicas (em particular o evolucionismo) e nas propostas políticas, e a busca de uma condição pessoal de aprovação num eventual julgamento do mundo, preocupação que permeava os movimentos evangélicos da época. (MARSDEN; SVELMOE, 2005, p. 2888). Conforme demonstrado adiante, a busca desta condição ‘aprovada’ estaria presente na causa do conflito do grupo em estudo, com a ideologia nazista.

Esse grupo, que daria origem ao movimento das Testemunhas de Jeová, foi organizado por Charles Taze Russell (1852-1916) (Figura 1). Nascido em 16 de fevereiro de 1852, na cidade de Allegheny (hoje parte de Pitsburgo), Pensilvânia, EUA, de ascendência escocesa-irlandesa, filho de presbiterianos, Russell foi criado num lar com fortes inclinações religiosas. Presbiteriano, a princípio, ele acabou se filiando à Igreja Congregacional1. (TRATADOS, 1993, p. 42) Desde cedo demonstrou ter um bom tino comercial, e já bem jovem dirigia um próspero comércio de roupas masculinas junto com seu pai, Joseph L. Russell, de quem era sócio. Entretanto, desde cedo também nutria um grande desconforto com várias concepções calvinistas em seu ambiente. Por exemplo, para ele a doutrina da predestinação não se harmonizava com a ideia de um Deus que concede livre-arbítrio a suas criaturas inteligentes. (WEDDLE, 2005, p. 4820) Além disso, a doutrina de um inferno de tormentos eternos não lhe parecia consistente com um Deus de amor. (ZYDEK, 2010, p. 11).

Assim, aos 15 anos ele iniciou por sua conta uma investigação de todo o material bíblico e religioso ao qual pudesse ter acesso, incluindo as principais religiões orientais. Apesar deste esforço, afirmou não ter conseguido encontrar uma compreensão que lhe parecesse satisfatória. Quando, conforme ele mesmo relata, estava decidido a esquecer tudo e dedicar-se exclusivamente aos negócios, aos 18 anos, Russell encontrou quase acidentalmente, reunido em um porão, na cidade de Allegheny, um pequeno grupo de pessoas com interesses bíblicos em comum. Eles realizavam a leitura de trechos da Bíblia e discutiam sobre seu possível significado. Buscavam uma compreensão não necessariamente submetida dos ensinos oficiais de outras igrejas. O pregador era o adventista Jonas Wendel, e, nas palavras de Russel, esta reunião “restabeleceu sua fé abalada na inspiração divina da Bíblia”. (ZYDEK, 2010, p. 28)


1 A Igreja Congregacional tem suas origens em grupos de puritanos e pioneiros que no início do século XV vieram da Inglaterra para os Estados Unidos em busca de liberdade religiosa. Seus fundamentos estabelecem que cada igreja local, ou congregação, é autônoma e completa, e que cada cristão possui plena liberdade de consciência para interpretar o evangelho. (MAURO, 2014)




  Figura 1 – Charles Taze Russel e sua esposa Maria, com quem se casou em 1879. (ZYDEK, 2010, p. 235)

Entre 1870 e 1875 Russell com mais algumas pessoas seguiu com suas pesquisas e, eventualmente, deixou os negócios e dedicou-se integralmente às investigações bíblicas. Conforme ele próprio afirmou, outros pesquisadores foram importantes para ele durante esse período, como George Stetson e George Storr, em particular na doutrina do resgate e na expectativa da iminente segunda presença de Cristo. Com base em seus estudos, porém, ele passou a desenvolver um corpo doutrinário próprio.

Assim como ocorria com vários outros grupos de então, uma das preocupações centrais era a identificação da ocasião e forma de um esperado retorno de Cristo. Russell não foi uma exceção. Por exemplo, ao estudar o termo grego original para “vinda” (também “volta” ou “presença”, dependendo a tradução) em Mateus 24:32, constatou tratar-se de “parousia”, que tem também o sentido de presença, sem necessariamente implicar no deslocamento ou na aparição física de alguém. Sua conclusão foi de que a volta de Cristo significaria sua “presença” no sentido de que sua atenção seria voltada para os assuntos da terra, e não implicaria em sua aparição nos domínios humanos. (PENTON, 2015, p. 13) Russell publicou suas conclusões no folheto “The Object and Manner of our Lord’s Return” (O Objetivo e Maneira do Retorno de Nosso Senhor).

Russell não era o único nessa interpretação. Em 1876, ele conheceu Nelson H. Barbour, influente escritor adventista, por meio de seu periódico The Herald of the Morning (O Arauto da Manhã) (Figura 2). Ambos compartilhavam o entendimento de que a volta de Cristo se daria de modo invisível. (TRATADOS, 1993, p. 133) Russell concordou com a ideia de Barbour de que esta volta invisível de Cristo, (RUSSELL, 1877, p. 39) havia ocorrido em 1874 e que, desde então, a humanidade estava vivendo um período de 40 anos durante o qual “o Reino seria estabelecido”. (BARBOUR; RUSSELL, 1877, pp. 83, 175) O ano final, 1914, marcaria o fim de um período chamado na Bíblia de “Tempos dos Gentios”3, ou seja, um tempo durante o qual o Reino de Deus não teria uma representação política na terra. (RUSSELL, 1889, p. Biii) Após esse período todos os governos humanos seriam destituídos (a rigor, destruídos) e o Reino de Deus iria governar a terra por mil anos, período esse mencionado em Apocalipse 20:1. (GARBE, 2008, p. 29) Nesta ocasião, os “santos seriam tomados”, ou seja, os que fossem julgados dignos receberiam sua recompensa nos céus, onde seriam “reis e sacerdotes e reinar sobre a terra”. (RUSSELL, 1877, p. 14)



2 Mateus 24:3. Este versículo dá inicio a uma longa profecia de Jesus sobre o que assinalaria o fim do mundo, em resposta à uma pergunta de seus discípulos. Diz: “E estando ele sentado no Monte das Oliveiras, chegaram-se a ele os seus discípulos em particular, dizendo: Declara-nos quando serão essas coisas, e que sinal haverá da tua vinda e do fim do mundo.” Grifo acrescentado. Versão João Ferreira de Almeida Revisada Fiel.

3 Tempos dos gentios. Termo usado por Cristo na mesma profecia sobre o fim do mundo, conforme consta no evangelho de Lucas 21:24: “E cairão ao fio da espada, e para todas as nações serão levados cativos; e Jerusalém será pisada pelos gentios, até que os tempos dos gentios se completem.” Versão João Ferreira de Almeida Revisada Fiel. São várias as interpretações para o termo, mas, para as Testemunhas de Jeová, ele se refere ao período que vai desde a destruição do templo em Jerusalém por Babilônia e a destituição do último rei judeu ungido, Zedequias (em 607 AEC, conforme defendido por elas), até a volta invisível de Cristo. (TRATADOS, 2000b, p. 688)


Vale notar aqui que segundo Russell e Barbour declararam em seu livro Three Worlds and the Harvest of this World (Três Mundos e a Colheita deste Mundo), durante esses 40 anos “os judeus serão restaurados” e “voltarão a habitar a palestina”. (BARBOUR; RUSSELL, 1877, p. 84) Por conta deste conceito, Russell foi relacionado ao movimento sionista, (WEDDLE, 2005, p. 4820), relação que foi usada posteriormente contra as Testemunhas de Jeová durante o regime nazista.

Em 1878, devido a divergências com Barbour relacionadas à doutrina do resgate4, Russell decidiu desfazer a parceria e iniciou seu próprio periódico. Publicada a partir de julho de 1879, a Zion’s Watch Tower and Herald of Christ’s Presence (A Torre de Vigia de Sião e Arauto da Presença de Cristo) (Figura 3), tornou-se o principal veículo de comunicação doutrinário do grupo. Ela é publicada até hoje com o nome de A Sentinela, com uma tiragem por edição de 42 milhões de exemplares, em 190 idiomas, e distribuída em 236 países. (TRATADOS)

 Figura 2 – The Herald of Morning Figura 3 – Zion’s Watchtower



4 Barbour publicou um artigo no qual negava que a morte de Jesus servia também como resgate expiratório do pecado da raça humana, ideia que era defendida por Russell. (TRATADOS, 1993, p. 47)


Por esta época, os apoiadores de Russell estavam organizados em trinta congregações autônomas, que faziam estudos tópicos da Bíblia. Russell as visitava periodicamente para fazer recomendações sobre a condução das reuniões (SOCIETY, 1976, pp. 38, 39) mas mantinham uma governança congregacional, isto é, autônoma.

Em 1881, Russell formou a Zion’s Watchtower Society (Sociedade Torre de Vigia de Sião), cujo propósito era organizar a impressão e distribuição dos periódicos dele, tendo como presidente o industrial e filantropo William Henry Conley (1840-1897) e o próprio Russell como secretário-tesoureiro. Em 15 de dezembro de 1884, Russell incorporou juridicamente a Sociedade no estado da Pensilvânia, EUA, e assumiu sua presidência. Em 1886, o nome da Sociedade foi alterado para Watch Tower Tract and Bible Society (Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados). (TRATADOS, 1993, p. 229) Com o tempo, outras sociedades jurídicas foram estabelecidas para cuidar de diversos aspectos do trabalho das Testemunhas de Jeová. Em 1886 também, Russell lançou o livro The Divine Plan of the Ages (O Plano Divino das Eras), o primeiro livro de uma série de seis escritos por ele, que veio a ser chamada de Studies in the Scriptures, (Estudos das Escrituras; originalmente A Aurora do Milênio), que consolidava as principais crenças do grupo na época. Dada sua importância para a fundamentação ideológica do grupo, seguem aqui descritos sumariamente. Os nomes foram alterados ligeiramente conforme as sucessivas edições, e os nomes que seguem são os finalmente adotados:

• Vol. 1 – The Divine Plan of the Ages (O Plano Divino das Eras): tratava de aspectos mais fundamentais da doutrina e da demonstração que Deus tem um plano para a humanidade. Trazia um gráfico em que expunha um desenvolvimento cronológico de acontecimento e que usava entre outras coisas as proporções da Pirâmide de Guizé para estabelecer alguns períodos – crença que foi abandonada posteriormente, em 1928. (TRATADOS, 2000d, p. 9)

• Vol. 2 – The Time is At Hand, 1889 (O Tempo Está Próximo): abordava a cronologia bíblica, especialmente no que se refere à volta de Cristo. (RUSSELL, 1889, p. Biv)

• Vol. 3 – Thy Kingdom Come, 1891 (Venha Teu Reino): apresentava os efeitos da volta de Cristo, inclusive sobre os judeus, e estudos das parábolas de Cristo. (RUSSELL, 1891, p. Ci)

• Vol. 4 – The Battle of Armagedon, 1897 (A Batalha do Armagedom): tratava do confronto final entre Deus, as religiões e os poderes políticos. (RUSSELL, 1897, p. Div)

• Vol. 5 – The Atonement Between God and Man, 1899 (A Expiação entre Deus e o Homem): neste volume Russell discorre sobre a doutrina da redenção, segundo a qual o homem pode se reconciliar com Deus com base na morte de Cristo. (RUSSELL, 1899, p. Eii)

• Vol. 6 – The New Creation, 1904 (A Nova Criação): analisava o relato bíblico da criação buscando respaldá-lo cientificamente, e discorre sobre a nova igreja, o grupo dos que atendem ao chamado divino, chamados aqui de ‘nova criação’. (RUSSELL, p. F62)

• Vol. 7 – The Finished Mistery, 1918 (O Mistério Consumado): publicado postumamente, com comentários sobre o livro bíblico de Apocalipse coletados por Clayton J. Woodworth e George H. Fisher, e editado por Joseph F. Rutherford, que sucedeu Russell na presidência da Sociedade. (TRATADOS, 1993, p. 67)

Durante a década de 1890, Russel empreendeu viagens pela Europa e países do Oriente, com o intuito de propagar suas crenças, e identificar possíveis multiplicadores. Os resultados foram lentos a princípio. Em 1897, a revista Zion’s Watch Tower and Herald of Christ’s Presence passou a ser publicada também em alemão, e, na virada do século, alguns grupos na Alemanha reuniam-se regularmente para estudar as publicações de Russell. (GARBE, 2008, p. 30) Assim, em 1902, Russell designou Otto Albert Kötitiz para liderar um escritório aberto na Alemanha. Kötitiz organizou um grande trabalho de divulgação através de panfletos inseridos em jornais e revistas religiosas, com uma distribuição de cerca de 1,5 milhão de exemplares, (SOCIETY, 1975, p. 70) e os Estudantes da Bíblia foram mencionados no catálogo Kirchen und Sekten der Gegenwart (Igrejas e Seitas da Atualidade) de 1905 – provavelmente a primeira menção do grupo numa publicação alemã. (GARBE, 2008, p. 31)


O aguardado ano de 1914 chegou, e as Testemunhas de Jeová na Alemanha, assim como em outras partes, estavam certas de que, com ele, o fim do mundo havia chegado. O assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa, em 28 de junho de 1914, em Sarajevo, e as rápidas consequências, que deram início à Primeira Guerra Mundial, chegou a ser visto como o sinal de que o fim de fato chegara. Entretanto, a guerra seguiu seu curso e o Reino de Mil anos não chegou, como aguardado. Ao contrário, com o prosseguimento da guerra, as Testemunhas de Jeová se viram, pela primeira vez, em face do problema da neutralidade, ao serem convocadas para as frentes militares. A orientação que receberam dos dirigentes do grupo foi apresentarem objeção de consciência para evitar o serviço militar, ou, caso este fosse inevitável, que solicitassem transferência para trabalhos médicos, e, em última instância, “se obrigados a servir nas trincheiras e disparar armas, não deveriam sentir-se na obrigação de matar um semelhante”. (RUSSELL, 1904, p. 595)

Não obstante unânimes quanto à ordem de ‘não matar’, não havia uniformidade no comportamento dos membros do grupo com relação a outras participações nos esforços de guerra, o que resultou em consideráveis disputas internas na filial alemã, conforme será detalhado mais adiante. (SOCIETY, 1975, p. 86) Além disso, este comportamento “antiguerra” motivou as autoridades alemãs a considerá-las como membros de uma seita potencialmente danosa ao estado, conceito que teria repercussões durante o Terceiro Reich. (KING, 1982, p. 137)

Russell presidiu a Sociedade até sua morte, em 16 de outubro de 1916, ao retornar de uma viagem de pregação. Segundo os registros da Sociedade Torre de Vigia, por volta dessa época seus sermões eram publicados por cerca de dois mil jornais, com uma circulação combinada de quinze milhões de leitores. Durante os trinta e dois anos em que atuou como presidente, Russell viajou mais de um milhão e seiscentos mil quilômetros como orador público, pregou pessoalmente mais de trinta mil sermões e dirigiu um grupo de oradores que chegou a ter setecentos membros. Seus escritos somaram mais de cinquenta mil páginas. (SOCIETY, 1976, p. 79)

A morte de Russell foi seguida por um período de alguma instabilidade no grupo. (WEDDLE, 2005, p. 4821) Devido a seu trabalho intenso e seu caráter carismático, que lhe rendeu o título de “pastor” Russell (SOCIETY, 1976, p. 36), para muitos membros da organização não haveria um substituto à altura. Não obstante, o nome de Joseph Franklin Rutherford foi proposto e votado pelos membros da diretoria, tendo sua aprovação sido comunicada na edição de 15 de janeiro de 1917 do periódico The Watch Tower. (TRATADOS, 1993, p. 65)

Este período inicial tratado aqui foi fundamental para a conformação do corpo doutrinário e de conduta das Testemunhas de Jeová, com consequências diretas nas causas ideológicas do confronto entre elas e o Partido Nazista, que ocorreria anos adiante. Entre os aspectos mais relevantes nesse sentido é possível identificar os seguintes:

• A autoridade de Deus é superior à dos governos humanos. Os governos devem ser obedecidos sempre que suas leis não se choquem com as leis de Deus.

• Os cristãos não participam em atividades políticas. São neutros quanto às formas de governo humano, pois seu rei é Cristo.

• Este mundo se aproxima do fim. A recompensa para os leais é futura e a vida atual é passageira. As ações praticadas aqui constituirão a base do julgamento de cada indivíduo.

• Estabelecimento das principais crenças: a alma não é imortal, a Trindade não é ensinada na Bíblia, a volta de Cristo se daria de modo invisível, entre outras;


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HISTÓRIA DOS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E SEU FUNDADOR

1.2 Desenvolvimento e conformação até a posse do Partido Nazista 



Para os fins desta pesquisa, o período de gestão de Rutherford (Figura 4) e os desenvolvimentos doutrinários ocorridos sob sua liderança são de especial relevância. Se o foco de Russell foi a determinação do que constituía a “verdade” bíblica e a conduta mais adequada ao cristianismo, é possível dizer que o foco de Rutherford foi organizacional, isto é, seus esforços visaram tornar a Sociedade uma organização eficiente e bem administrada. (WEDDLE, 2005, p. 4821)

Rutherford tornou-se Testemunha de Jeová em 1906, e, por conta de sua formação, um ano depois assumiu a função de consultor jurídico da Sociedade Torre de Vigia. Por ter servido eventualmente como juiz especial da Oitava Jurisdição do Tribunal de Missouri, ficou conhecido como “Juiz” Rutherford. Diferente dos modos e da personalidade de Russell, Rutherford tinha uma disposição mais confrontativa e autoritária, o que causou o afastamento de alguns membros da liderança. (TRATADOS, 1993, pp. 67, 68)

Ainda sobre a mudança no estilo dos dois primeiros líderes do grupo, Macmillan, membro do grupo e testemunha ocular da transição, comenta:

Russell havia deixado muito para cada indivíduo quanto à forma como devíamos cumprir nossas responsabilidades. Quando éramos enviados como oradores para visitar as congregações, tínhamos o nosso próprio modo de fazê-lo. Nós selecionamos nossos próprios assuntos para as palestras e, como resultado, havia uma considerável confusão quanto ao que havia sido dito. Rutherford queria unificar o trabalho de pregação e, em vez de cada indivíduo dar a sua própria opinião e dizer o que ele achava que era certo e fazer o que estava em sua própria mente, gradualmente Rutherford próprio começou a ser o principal porta-voz da organização. Essa foi a maneira que ele concebeu para que a mensagem fosse transmitida sem contradições. (MACMILLAN, 1957, p. 152) Tradução do autor.

  Figura 4 - Joseph Franklin Rutherford, em 1910. (MACMILLAN, 1957, p. 124)

Com a Primeira Guerra Mundial em andamento, a questão da neutralidade constituiu um foco de atenção nos primeiros anos da presidência de Rutherford. De especial importância foi o lançamento do livro The Finished Mistery (O Mistério Consumado), que foi considerado subversivo pelo governo americano e canadense. Em 7 de maio de 1918 foram expedidos mandados federais de prisão para Rutherford e os diretores da Watch Tower e no dia 4 de julho do mesmo ano, foram presos na penitenciária federal de Atlanta, Geórgia, EUA, com penas variando de 10 a 20 anos. Com a interposição de vários recursos, e também com o fim da guerra, todos foram libertados sob fiança nove meses depois, em 21 de março de 1919. (TRATADOS, 1993, p. 654) Apesar disso, muitas ações violentas foram dirigidas às Testemunhas de Jeová nos Estados Unidos, cujos ensinamentos foram considerados antigovernistas. (WEDDLE, 2005, p. 4821) Essas envolveram prisões, espancamentos, confisco de publicações e açoitamento, entre outros. (TRATADOS, 1993, p. 650) A obra Judging Jehovah’s Witnesses: religious persecution and the dawn of the rights revolution, de Shawn Francis Peters, trata em detalhes desse período nos EUA.

O ponto de vista das Testemunhas de Jeová sobre estes ataques é que eles foram induzidos pelo clero de outras religiões. Conforme afirma (TRATADOS, 1993, p. 649), “Entre os instigadores estavam clérigos batistas, metodistas, episcopais, luteranos, católico-romanos e de outras religiões”. O sociólogo Ray J. Abrams é citado em (2012, p. 168), como atribuindo o ‘movimento de extermínio dos Russelitas ao clero, descontente com as cortantes acusações do livro O Mistério Consumado’. De qualquer modo, estabeleceu-se perante parte da opinião pública e o governo uma vinculação ideológica entre os ensinamentos das Testemunhas de Jeová e uma postura antigovernistas e antiecumênica. E, por isso, as Testemunhas de Jeová, em virtude de seus ataques às demais religiões, tampouco contavam com qualquer apoio delas.

Sob a liderança de Rutherford, além dessa postura assertiva e antagônica para com os sistemas políticos e religiosos, também uma importante reinterpretação doutrinária teve que ser feita, que igualmente teria consequências no confronto com o Terceiro Reich. Como visto, a expectativa de que 1914 traria a salvação dos escolhidos não se realizara, o que trouxe considerável desapontamento para muitos. Assim, no período de 1918 a 1925, em seu discurso “O mundo acabou – milhões que agora vivem jamais morrerão”5, ele apresentou o entendimento de que durante aqueles anos as pessoas teriam a oportunidade de aceitar a mensagem. Em não muito tempo ocorreria a restauração da terra, na qual os humanos obedientes seriam conduzidos à perfeição original, ao passo que os desobedientes seriam exterminados. (TRATADOS, 1993, p.163) Em 1925 houve também uma nova explicação referente ao ano de 1914, a saber, que este ano, que marcava o fim dos “Tempos dos Gentios”, marcava também o início da presença invisível de Jesus Cristo como Rei do reino de mil anos, nos céus, e não 1874, como proposto por Russell. Neste ano também, 1914, o Diabo teria sido expulso do céu, e obrigado a exercer seu domínio apenas na Terra. (SOCIETY, 1925, p. 73)

5 Esse discurso foi publicado e distribuído também na forma de folheto. 

Esta releitura dos acontecimentos, reforçada pelo início da Primeira Guerra Mundial justamente em 1914, transformou a não realização das expectativas em realização, conciliando sua fé no invisível (Cristo como Rei nos céus) com a continuidade, ainda que temporária, dos sistemas políticos na terra, e a necessidade da continuidade do trabalho. (GARBE, 2008, p. 36) É importante destacar o alcance dessa compreensão, em particular para os eventos durante o Terceiro Reich. Segundo ela, a partir de 1914 os governos seculares haviam perdido o direito de governar, ao mesmo tempo em que, no céu, a liderança de Cristo fora estabelecida, ainda que invisivelmente. Os governantes políticos estariam sob o poder do Diabo. Isso estabeleceria uma clara separação entre os que estavam sob a liderança invisível de Cristo, e os que não estavam, a julgar pela sua demonstração de lealdade. Os “verdadeiros adoradores” deviam obediência absoluta apenas a Deus e seu filho Jesus Cristo.

Um outro ajuste de entendimento veio somar-se a este, no sentido de reforçar o dever primário de obediência ao Reino e a separação do resto do mundo. Este relaciona se às palavras do apóstolo Paulo, na carta aos Romanos capítulo 13 versículo 1, a saber: “Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores, pois não há autoridade exceto por Deus”.6 (grifo acrescentado) Russell havia explicado que essas “autoridades superiores” referiam-se aos governos seculares. (RUSSELL, 1889, p. 81)

Entretanto em 1929, na edição de 1 de junho da revista The Watch Tower and Herald of Christ’s Presence, o termo é explicado como se aplicando a Deus e a Jesus Cristo. “A instrução do capítulo 13 de Romanos tem sido há muito aplicada erroneamente. (...) O apóstolo está, essencialmente, dizendo que os membros da igreja devem ser obedientes a Deus”. (SOCIETY, 1929a, p. 163) Segundo Garbe, essa mudança refletia um esforço de Rutherford de estabelecer uma hierarquia de autoridade teocrática, na qual a Sociedade tivesse uma clara posição de comando, uma vez que ela seria o representante da autoridade suprema de Deus na terra, diminuindo sobremaneira a relevância dos governos seculares. (2008, p. 41) De todo modo, vê-se reforçado aqui o esforço de estabelecer uma clara distinção entre membros e não membros do grupo, em função de qual seria sua fonte derradeira de autoridade.


6 Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada, 2015. Produzida e distribuída pelas Testemunhas de Jeová.

Na edição seguinte da revista, esse conceito foi ligado diretamente à não participação do grupo em atividades militares de espécie alguma, estabelecendo uma posição bem mais clara a esse respeito da que haviam tomado na Primeira Guerra Mundial. Disse o artigo:

“Aqueles que compõem “a Sociedade”, dentro do significado deste termo como definido aqui, e que são desta forma os ungidos por Deus na terra, cuja companhia de cristãos é chamada também de Estudantes Internacionais da Bíblia 7 , enquanto ainda em carne devem ser governados pela lei de Deus. Suas leis são expressas na sua Palavra e portanto são as leis dos Estudantes da Bíblia, e estas leis proíbem de modo absoluto tais ungidos de envolver-se em guerras com armas carnais. Por esta razão os Estudantes da Bíblia são mal entendidos pelas autoridades deste mundo. Eles [os Estudantes] não têm interesse em interferir com os governos do mundo ou as ações dos mesmos, nem podem quebrar voluntariamente a lei de Deus. Não é prerrogativa dos Estudantes da Bíblia como Cristãos dizer que as nações ou pessoas na terra não devem envolver-se em guerra. Este assunto não é deles. Seria errado eles tentarem interferir com o engajamento das nações em guerras, ou alistarem homens para envolver-se numa guerra. No que diz respeito às ações de uma nação em selecionar e treinar um exército, nenhum cristão tem o direito de interferir. É um assunto que a própria nação deve determinar.” (SOCIETY, 1929b, p. 183), tradução e grifo do autor.8

Mesmo em atividades que não envolvessem guerras, a posição era de absoluto não envolvimento, diferentemente da posição anterior, em que trabalhos não ligados diretamente ao combate poderiam ser aceitos. Por exemplo, a recusa em saudar a bandeira foi motivo de várias ações legais. Essa questão ocorreu fortemente na Alemanha durante o período nazista, quando a saudação à bandeira e ao símbolo da suástica se tornaram obrigatórias, mas ocorreram em muitas partes dos Estados Unidos e Canadá também. As Testemunhas de Jeová foram orientadas a não participar em tais cerimônias, uma vez que elas constituiriam uma violação de sua neutralidade. “A bandeira dos Estados Unidos não é a bandeira de Jeová Deus e Cristo Jesus” foi a pronunciação de Rutherford numa transmissão nacional de rádio chamada “Saudação à Bandeira”. (RUTHERFORD, 1935, p. 37)


7 Antes de adotarem o nome Testemunhas de Jeová, em 1933, o grupo era chamado de Estudantes Internacionais da Bíblia, ou, Estudantes da Bíblia.

8 Em 1962, a compreensão de que as “autoridades superiores” referem-se aos governos seculares foi retomada, e é a explicação atual de Romanos 13:1. (TRATADOS, 2006a, p. 29)

De fato, com base no desenvolvimento da ideologia do grupo, seria previsível que sua posição diante da obrigatoriedade de qualquer demonstração de patriotismo não poderia ser outra que não a total rejeição. Porém, deve-se ressaltar que, conforme PENTON, a forma como a recusa foi proclamada por Rutherford, não contribuiu para que essa posição fosse compreendida e eventualmente aceita. “Se as Testemunhas de Jeová tivessem decidido lutar contra os exercícios patrióticos obrigatórios e às leis de saudação à bandeira com mais tato tanto a nível de estado como a nível local, todo o assunto teria sido diferente”. (PENTON, 2004, p. 125) O historiador STEVENS observa que, de fato, nem todos os cidadãos americanos estavam de acordo com essa obrigatoriedade, ainda que por motivos muito diferentes das Testemunhas de Jeová. A similaridade desta obrigatoriedade com o que ocorria na Alemanha nazista daqueles dias estava entre esses motivos. (STEVENS, 1973, p. 23) Em sua fala, Rutherford também assinalou essa semelhança, ao dizer que “o governo de Hitler, um fedor nas narinas das pessoas honestas, requer que as pessoas na Alemanha prestem saudações e proclamem “Heil Hitler”, e os que se recusam a isso são severamente punidos.” (RUTHERFORD, 1935, p. 36)

Como resultado, durante este período foram travadas várias batalhas legais nos Estados Unidos, com o objetivo de garantir a liberdade de adoração na forma das Testemunhas de Jeová. Conforme Peters, as vitórias obtidas são consideradas fundamentais para o estabelecimento das garantias civis na Constituição dos Estados Unidos da América, (2000, p. 14) e ‘introduziram um novo conjunto de valores constitucionais que afetariam inevitavelmente e de modo permanente o modo de vida americano’. (HELLER, 1943, p. 459)

Esta posição de clara separação não se restringiria ao âmbito político. Do ponto de vista religioso também, havia uma clara identificação de todas as demais religiões como fazendo parte de um único sistema, cujo objetivo seria afastar a humanidade da forma correta de adoração. Conforme Rutherford declarou no livro Enemies (Inimigos), em 1937:

Todas as organizações religiosas na terra são constituídas e conduzidas por homens que estão sob influência nociva e são governadas pelo grande inimigo Satanás, o Diabo; isso é verdade, quer eles se deem conta ou não, porque a Bíblia assim o afirma... Há duas organizações em existência, a saber: a organização do Deus Todo-poderoso, que é completamente correta, pura e verdadeira, e a organização do Diabo, um deus de imitação, que é profana, iníqua e inteiramente falsa. As pessoas na terra estão sujeitas ou a uma ou a outra dessas duas organizações. (RUTHERFORD, 1937, p. 72), tradução do autor.

Como consequência, as Testemunhas de Jeová não eram vistas com simpatia nem pelos governos nem pelas demais religiões, e nem por muitas pessoas em geral. Nos Estados Unidos e Canadá várias comunidades ofereciam resistência às suas atividades de proselitismo. Durante a próxima década, ocorreram centenas de prisões e manifestações violentas, assim como acusações de sedição, discriminação no trabalho e jovens expulsos da escola. (PETERS, 2000, p. 11) Muitos praticantes de outras religiões sentiam-se insultados pela mensagem delas, por considerarem-na discriminatória, ou, pelo menos, uma invasão em sua privacidade. (PENTON, 2004, p. 118)

Um fator que contribuiu sobremaneira para essa percepção de intenso proselitismo deveu-se a outro desenvolvimento ideológico ocorrido durante a presidência de Rutherford, e relacionava-se a esperança de salvação. Desde Russell, o objetivo principal de salvação restringia-se a um grupo de 144.000 humanos escolhidos que herdariam uma vida no céu após sua morte aqui na terra, na qual reinariam com Cristo, durante seu reinado milenar. O principal objetivo do cristão seria qualificar-se para estar neste grupo. Os humanos na terra eventualmente alcançariam uma condição de perfeição, sob o reinado de Jesus Cristo. A esse grupo é que Rutherford se referia como os ‘milhões que agora vivem e que jamais morreriam’ – os demais seriam eliminados na morte. Entretanto, haveria um grupo “secundário” que herdaria a vida no céu, que até a morte de Russell era identificado com a “grande multidão” descrita em Apocalipse 7:9, cuja escolha dependia inteiramente de Deus. Em resumo, a preocupação primária não era ganhar novos adeptos, mas produzir sua própria salvação, por se qualificar para estar em um desses grupos. Isso mudou em 1935, quando, no congresso realizado em Washington, D.C., EUA, apresentou-se a explicação de que a “grande multidão” era, de fato, o grupo de sobreviventes que permaneceria na terra, depois da eliminação dos que fossem considerados indignos, e a responsabilidade de cada Testemunha de Jeová era pregar e encontrar todos os potenciais membros desta “grande multidão”, convertendo-os. (SOCIETY, 1959, p. 140)

Uma das consequências desse novo entendimento, isto é, deste novo papel de cada membro como responsável por buscar outros a serem salvas, foi a mudança do nome do grupo. Os associados de Russell dirigiam-se a si mesmos simplesmente como Estudantes da Bíblia, e, em 1910 constituíram a Associação Internacional dos Estudantes da Bíblia. (TRATADOS, 1993, p. 151) Porém, consoante com os novos entendimentos do grupo, em 1931, o nome “Testemunhas de Jeová9” foi adotado, com vistas a destacar (1) o papel primordial dos membros, a saber, dar testemunho, e (2) o uso do nome de Deus, um dos principais ensinamentos do grupo. (SOCIETY, 1932, p. 23)

Na opinião de STERLING, esse foi um “golpe de gênio” de Rutherford, à medida em que deu uma identidade ao grupo, ligando-a ao que se entendia ser seu principal objetivo na terra. (STERLING, 1975, p. 51)

Isso explica também o ímpeto do trabalho de proselitismo da época, com a consequente reação muitas vezes antagônica da opinião popular. Isso, entretanto, não as surpreendia. Ao contrário, além de esperado, era uma confirmação de que estavam no caminho certo e que o fim deste mundo estava próximo, conforme aguardavam.

“O canto de louvor ao Altíssimo anuncia que seu Reino é a única esperança para o mundo e que Cristo reinará agora em justiça e destruirá toda a hipocrisia e iniquidade. Este canto perturba a velha “meretriz”10, e ela toca sua harpa com todo seu poder e energia e usa todo seu poder e influência para tirar os harpistas do Senhor do caminho. As canções desta prostituta anunciam que o sistema Católico Romano é a esperança para o mundo; e ao passo que ela canta, fanáticos como Hitler e Mussolini aplaudem e dão seu suporte. A perseguição dela às Testemunhas de Jeová é prova conclusiva desta afirmação.” (RUTHERFORD, 1937, p. 275), tradução do autor.


9 Originalmente “testemunhas de Jeová”, com o “t” inicial em minúscula. A partir de 1976 as publicações das Testemunhas de Jeová passaram a usar o “T” maiúsculo.

10 Referência à meretriz que aparece no livro bíblico de Apocalipse, entendida como símbolo do conjunto de todas as religiões “falsas” do mundo. Apocalipse 17:5 – “Na sua testa estava escrito um nome, um mistério: “Babilônia, a Grande, a mãe das prostitutas e das coisas repugnantes da terra.”” Tradução no Novo Mundo da Bíblia Sagrada, 2015 (TRATADOS, 1972, p. 154)


Este cenário era semelhante ao que existia na Alemanha, neste mesmo período. Como visto, Russell havia designado Otto Albert Kötitiz em 1902 para supervisionar a filial Alemã. Após alguns contratempos, ele foi finalmente substituído em 1914 por Conrad Binkele, também enviado por Russell. Kötitiz morreu em 1916, apenas cinco semanas depois de Russell. Essas mortes, mais o não cumprimento das expectativas referentes a 1914, mais as diferenças no conceito da neutralidade durante a Primeira Guerra causaram um impacto negativo nesse início de operações na Alemanha. (SOCIETY, 1975, p. 88) Num esforço de estabelecer alguma normalidade na filial, em 1920, uma comissão local elegeu Paul Balzereit como seu coordenador, e ele atuaria nesta posição durante todo o período de proscrição. (GARBE, 2008, p. 45) Os fatos ocorridos nesse período serão abordados no capítulo 3 desse trabalho.

Para possibilitar a compreensão do confronto ideológico ocorrido durante o Terceiro Reich, segue-se agora uma descrição e análise do conjunto de doutrinas vigentes na época, e que se relacionam às causas do confronto propriamente.


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1.3 Doutrinas fundamentais das Testemunhas de Jeová 



Uma doutrina é a versão oficialmente aceita de um ensinamento religioso. As doutrinas buscam fornecer à religião sistemas intelectuais de orientação nos processos de instrução, disciplina, propaganda, e controvérsia. O desenvolvimento de doutrinas afetou significativamente as tradições, instituições e práticas das religiões do mundo. Doutrinas e dogmas também influenciaram e foram influenciados pelo desenvolvimento contínuo da história secular, ciência e filosofia. (OUTLER, 2015, chap. Doctrine and dogma) No cristianismo, em particular as doutrinas estão fortemente ligadas à salvação, isto é, constituem os ensinamentos através dos quais a salvação é oferecida a todos aqueles que os ouvem e respondem. (COMSTOCK, 1987, p. 2382)

Assim, para a compreensão do confronto ideológico entre o Partido Nazista e as Testemunhas de Jeová, é importante examinar algumas de suas principais doutrinas. (GARBE, 2008). De fato, conforme já visto, por conta de sua interpretação bíblica, muitas vezes bastante inflexível, e nem sempre bem compreendida, não foram poucos os conflitos entre Testemunhas de Jeová e o governo, as outras religiões e a opinião pública, desde o início de suas atividades.

As principais doutrinas das Testemunhas de Jeová têm em comum três premissas importantes para este estudo:

• A Bíblia é em sua inteireza inspirada por Deus e infalível. O texto bíblico deve ser examinado em profundidade exegética, e sua interpretação é feita tanto pelo contexto, como pela harmonização com outras passagens da Bíblia, já que ela não se contradiz. (WEDDLE, 2005, p. 4822) A leitura regular da Bíblia é encorajada exaustivamente, e o seu estudo individual e em grupo é parte da rotina das Testemunhas de Jeová, usualmente com o auxílio de suas publicações, especialmente a principal delas o periódico A Sentinela, (TRATADOS, 2000a, p. 359); não há espaço para interpretações ou entendimentos individuais do texto bíblico. Assim, o corpo doutrinário é uno e não há correntes ou facções com entendimentos particulares. Muito embora o texto bíblico seja infalível, sua interpretação não o é, já que, vez por outra ocorrem ajustes em sua compreensão. Conforme advogam, esses ajustes não colocam em risco a autoridade de sua interpretação. Ao contrário, a aceitação dos ajustes no entendimento é vista como uma expressão de lealdade à organização. (TRATADOS, 2015, p. 26)

• Os acontecimentos históricos são conduzidos por Deus, sempre que esses tiverem relação com seu propósito, a saber: ratificar sua soberania e dar aos humanos uma oportunidade de mostrar sua lealdade. Jesus Cristo tem um papel central nesse propósito. (TRATADOS, S. T. DE V. DE B. E, 2010b, p. 25) 11 Por exemplo, o sofrimento experimentado às mãos de autoridades civis, como o que ocorreu durante o Terceiro Reich, é visto como parte do propósito de Deus de demonstrar que Ele tem servos fiéis à sua soberania. (KING, 1982, p. 237)

• A lealdade a Deus é demonstrada de duas formas: pelo sentimento de fé, e por sua manifestação através de ações. Em outras palavras, as ações não motivadas por uma fé sincera são inúteis, assim como não é possível exercer a fé sem manifestá-la através de ‘obras’. Essas devem ser exercidas em sua conduta pessoal (inclusive íntima) e familiar, mas, principalmente pelo trabalho de divulgação da mensagem divina, que consideram o trabalho mais importante que alguém pode exercer. (GARBE, 2008, p. 37) De cada membro, independente de sua função no grupo, se espera a participação nesse trabalho, que passou a ser feito de modo sistemático em público e de casa em casa a partir de 189912,13. As ações que demonstram sua fé devem ser exercidas em quaisquer ocasiões, sejam de extremo lazer, sejam de extremo sofrimento.

Com base nessas premissas é possível identificar a doutrina central que fornece o pano de fundo, ou a mola propulsora, de todas as demais doutrinas. Ela está, não somente na causa essencial do confronto com o Terceiro Reich, mas na explicação das Testemunhas de Jeová sobre a origem de todos os acontecimentos da história do homem desde sua criação. É essa doutrina que, em última análise, determina seu comportamento desde as questões mais simples até aquelas que colocam sua própria vida em risco, a saber: a questão da soberania universal, explanada a seguir. Ela foi enunciada por Rutherford num congresso realizado em 1941, em St Louis, Missouri, num discurso intitulado “Integridade”. (SOCIETY, 1941, p. 284)




11 Esse foi um elemento tangencial de confronto também, já que as Testemunhas de Jeová não fazem distinção de importância entre o Velho e o Novo Testamento, que chamam, respectivamente de Escrituras Hebraicas e Escrituras Gregas. A valorização das escrituras hebraicas foi usada pelo Partido Nazista para declará-los simpatizantes dos judeus.

12 “Voluntários Desejados!” era o título de um artigo na Torre de Vigia de Sião de 15 de abril de 1899. Propunha novo método de disseminação das verdades bíblicas, a saber, a distribuição de folhetos em público, em princípio na saída das igrejas, e, com o tempo, de casa em casa. Na primeira ação desse tipo 300.000 exemplares de um novo folheto intitulado “A Bíblia vs. a Evolução” foram distribuídos. Eram entregues às pessoas à medida que saíam das igrejas no domingo. (TRATADOS, 1976, pg. 45)

13 A partir de 1920, cada Testemunha de Jeová deve reportar quantas horas gasta na atividade de pregação. (SOCIETY, 1976, p. 124)


Segundo a leitura que fazem do primeiro livro da Bíblia, Gênesis14, Deus criou todo o universo, e como clímax de sua obra, criou o primeiro casal humano, Adão e Eva, e os colocou na Terra, especificamente no Jardim do Éden. O objetivo seria que eles ‘se multiplicassem e enchessem a terra’ com sua prole, constituindo uma grande família para habitar em plena harmonia um planeta de condições paradisíacas. Essa família humana comporia a grande família universal de Deus, juntando-se à legião de criaturas espirituais angélicas criadas anteriormente ao mundo material. A primeira e principal dessas criaturas angélicas era o Filho de Deus, princípio de sua criação, considerado portanto o ‘primogênito’ e posteriormente chamado de Jesus Cristo15. Ele foi o único criado diretamente por Deus, e por isso é seu filho ‘unigênito’, sendo que todas as demais obras (animadas e inanimadas) foram executadas por meio dele. Enfim, o propósito original de Deus seria que todo o universo inteligente, físico e espiritual, estivesse unido harmoniosamente sob a soberania de seu Criador. (TRATADOS, 2000b, p. 615)

A lealdade à soberania de Deus, porém, havia de ser uma manifestação voluntária e consciente, e não instintiva ou autômata. Muito embora Deus tenha conferido às suas criaturas humanas seu próprios atributos, elas foram dotadas também de livre arbítrio. E para permitir que os humanos exercessem esse livre arbítrio e demonstrassem sua lealdade, Deus submeteu o primeiro casal a um teste: proibiu que comessem os frutos de uma das árvores do jardim, chamada de ‘árvore do conhecimento do que é bom e do que é mal’16. Nas palavras de Gênesis, dirigindo-se ao primeiro casal, Deus diz: “Mas, quanto à árvore do conhecimento do que é bom e do que é mal, não coma dela, porque, no dia em que dela comer, você certamente morrerá”. Gênesis 2: 16, 1717. (TRATADOS, 1975, p. 34)





14 Apesar da leitura bastante literal que fazem do livro de Gênesis, e acreditarem na Criação e não na Evolução, as Testemunhas de Jeová não são Criacionistas. Por exemplo, defendem que os dias criativos não são intervalos fixos de 24 horas, mas períodos de tempo necessários para a realização de um grande ciclo de acontecimentos. Esses períodos podem ter sido de milhares ou milhões de anos. (TRATADOS, A. T. DE V. DE B. E, 2010, p. 24)

15 As Testemunhas de Jeová não são trinitaristas. Assim creem que Deus e Jesus Cristo são pessoas diferentes e que o espírito santo não é uma pessoa, mas a manifestação do poder de Deus (sua ‘força ativa’). (TRATADOS, 2000a, p. 689)


Pois bem, uma das criaturas espirituais recebera de Deus a tarefa de zelar pelo primeiro casal e pelo paraíso. Este anjo, porém, invejoso da soberania de Deus, quis para si uma posição igual à Dele. Com esse fim, induziu o primeiro casal a desobedecer a ordem que Deus havia dado. O fruto em si não tinha nada de especial substancialmente, mas a ação de comê-lo expôs a insubordinação da criatura espiritual, que tornou-se o Diabo, ou Satanás18, e do primeiro casal, apartando-os da relação privilegiada que tinham com Deus. Conforme ensinam, foram dois os significados destes acontecimentos. “Por mentir e desviar Adão e Eva de Deus, Satanás questionou o direito divino de exigir obediência da humanidade. E, por induzir o primeiro casal humano a desobedecer a Deus, Satanás questionou também a lealdade de todas as criaturas inteligentes.”

(TRATADOS, S. T. DE V. DE B. E, 2010b, p. 25). Assim:

Basicamente, Satanás deu a entender que a humanidade seria mais feliz

se seguisse um caminho independente de Deus. Em vez de apoiar a

justiça da soberania divina, Adão deu ouvidos à sua esposa e juntou-se a ela em comer do fruto proibido. Assim, Adão perdeu sua condição

perfeita perante Jeová e nos colocou sob o jugo cruel do pecado e da

morte. E a humanidade ficou sujeita a uma soberania rival, a de Satanás,

“o deus deste mundo”. — 2 Cor. 4:4, Pastoral; Rom. 7:14. (TRATADOS, S.

T. DE V. DE B. E, 2010a, pp. 8–12)



16 As Testemunhas de Jeová creem que a referência ao fruto é literal. Não atribuem a ele um símbolo para as relações sexuais, já que não faria sentido com base na ordem de que ‘tivessem filhos e enchessem a terra’.(TRATADOS, 2000b, p. 202)

17 Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada, 2015.

18 Eventualmente, outros anjos decidiram juntar-se ao Diabo, e se tornaram os demônios. (TRATADOS, 2000a, p. 680)



As Testemunhas de Jeová entendem que, ao rejeitar a soberania divina, a raça humana lançou fora a dádiva da vida eterna que haviam recebido de Deus. Isso se deu porque a morte dos seres humanos não constava do propósito original de Deus. Assim como as criaturas espirituais, o homem foi concebido para viver eternamente. O corpo perfeito com que foi dotado teria essa capacidade. O advento da morte foi uma consequência do ato de desobediência do primeiro casal, já que, o aviso fora: “no dia19 em que dele [do fruto proibido] comeres, positivamente morrerás”. Conforme ensinam, não fosse o ato de rebelião, e o consequente afastamento de Deus, os humanos continuariam a viver eternamente, num estado descrito como “perfeitos”, isto é, livres de doenças físicas, mentais ou emocionais, em plena relação com seu Criador. A partir do pecado, tornaram-se “imperfeitos”, e legaram este estado de imperfeição a toda sua prole, isto é, toda a humanidade. Essa ideologia dá uma ideia das dimensões das consequências de violar a soberania de Deus. Durante o Terceiro Reich, cada Testemunha de Jeová colocava-se a si mesma diante de uma escolha similar à de Adão.

Em vista dessa mudança de rumo, Deus tomou medidas para o retorno ao seu propósito original. O fundamento em que baseiam essa doutrina é buscado na declaração feita por Deus logo após o pecado original, segundo o registro bíblico que se encontra em Gênesis 3:15. No relato, dirigindo-se ao anjo que se tornara o Diabo, naquele momento representado por uma serpente, Deus sentenciou: “Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o descendente dela; este lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar.” Em outras palavras, a sentença divina era que o Diabo e sua descendência seriam destruídos por meio de um “descendente”. Quem seria este? Explicam as Testemunhas de Jeová:

O visível derramamento do espírito santo sobre Jesus o identificou como

o Ungido, que significa Messias, ou Cristo. (João 1:33) Finalmente havia

aparecido o prometido “descendente”! Diante de João, o Batizador,

estava aquele cujo calcanhar seria machucado por Satanás e que, por

sua vez, machucaria a cabeça desse arqui-inimigo de Jeová e de Sua

soberania. (Gênesis 3:15) (TRATADOS, 2007b, p. 26 a 28)



19 Conforme explicam, embora não tenham literalmente morrido ‘no dia’ em que comeram, foi nesse dia que receberam a sentença de morte, estando portanto, para os fins do julgamento, mortos. (TRATADOS, 1983, p. 56)



Nesse ponto, é importante destacar o papel messiânico especial que atribuem a Jesus Cristo na realização desse propósito duplo de Deus. (WEDDLE, 2005, p. 4822) Desde sua origem no século XIX, com Charles T. Russell, essa foi uma das pedras fundamentais teológicas do grupo, e que também estaria na essência do confronto com o Terceiro Reich, a saber, a doutrina do resgate.

A declaração de Gênesis 3:15, segundo as Testemunhas de Jeová, indica de que forma Deus realizaria seu propósito, a saber, por meio de um “descendente”, com o tempo identificado como o próprio filho de Deus, Jesus Cristo. Seu papel messiânico cumpriria dois propósitos.

Primeiro, como consequência da rebelião, a humanidade “ficou devendo” sua dádiva de vida eterna a Deus. Em outras palavras, a humanidade lançou fora, ou desperdiçou um bem dado por Deus – a vida eterna – tornando-se assim devedora Dele. A única maneira de reequilibrar a situação, e permitir uma reaproximação com o Criador, seria a recíproca: um ser humano perfeito oferecer voluntariamente sua vida a Deus, como um pagamento pela dívida, ou, um resgate. Isso criou um problema a princípio insolúvel, já que toda a humanidade nascida de Adão estava sujeita à imperfeição. Para resolver esse impasse, Deus permitiu que seu filho espiritual nascesse como humano perfeito (Jesus Cristo) e oferecesse sua vida em sacrifício, resgatando assim a humanidade dos efeitos da rebelião, ou seja, pagando a dívida da humanidade com Deus. Os benefícios desse resgate seriam aplicados à humanidade num período futuro, conforme explicado adiante.

Segundo, por sua vida íntegra como ser humano perfeito (igual a Adão) Jesus demonstrou que é possível manter a lealdade a Deus, mesmo em face da morte, desmentindo com isso a afirmação feita implicitamente pelo Diabo no episódio do jardim do Éden. No célebre diálogo entre Jesus Cristo e o Diabo, registrado no evangelho de Mateus 4, essa opção de Jesus é bastante bem ilustrada. De acordo com o evangelista, o Diabo faz três tentativas para, de algum modo, levar Jesus à transigência: pede que ele transforme pedras em pães20, para que ele provasse ser o filho de Deus, que ele saltasse do templo, para provar que tinha a proteção especial de Deus, e, por fim, oferece-lhe o domínio sobre todos os reinos do mundo, em troca de um só ato de adoração. A todas elas Jesus rechaçou, demonstrando com isso que a prova à que Adão fora submetido não estava além de sua capacidade de resistência.

Por esses fatos, para as Testemunhas de Jeová, Jesus Cristo é o Messias de Deus, o único ao qual se pode atribuir legitimamente a salvação. Conforme explicam:

A rebelião no Éden levantou uma questão que afetou todas as criaturas de Deus: será que Jeová Deus exerce domínio sobre suas criaturas do

modo correto? Para resolver essa questão fundamental, Jeová decidiu

que um filho espiritual perfeito teria de vir à Terra. A missão desse filho

não poderia ser mais importante — dar a vida para vindicar a soberania

de Jeová e servir como resgate para a salvação da humanidade. Por

permanecer fiel até a morte, esse filho escolhido tornaria possível

resolver todos os problemas que surgiram com a rebelião de Satanás.

(Hebreus 2:14, 15; 1 João 3:8) (TRATADOS, 2007a, p. 15)

Com essas realizações, Cristo conquistou também o direto de ser o Rei no Reino de Deus – um outro conceito importante para a compreensão do confronto em com o Partido Nazista, e atribuição do papel salvador a Hitler, inclusive na saudação “Heil Hitler” (Salve, Hitler). Este Reino, ou governo, seria, em essência, o mecanismo que Deus elaborou para a legitimação de sua soberania e a salvação dos que permanecerem leais a ela. Conforme enfatizam, o Reino de Deus estava na essência de toda a mensagem pregada por Jesus Cristo, no período registrado pelos evangelhos, conforme evidenciado na oração do Pai-nosso pelo pedido “venha o teu Reino”. O Reino de Deus seria o instrumento legal e legítimo usado por Deus para a realização de seu propósito.

Além disso, o Reino está estruturado para fazer com que ‘se realize a vontade de Deus, como no Céu, assim também na Terra’. E qual é essa vontade? É restabelecer o relacionamento entre Deus e a humanidade, que Adão perdeu. O Reino servirá também para realizar o propósito do Soberano Universal, Jeová, de estabelecer um paraíso na Terra no qual pessoas boas poderão viver para sempre. De fato, o Reino de Deus vai desfazer todos os danos causados pelo pecado original e tornará realidade o amoroso propósito de Deus para com a Terra. (1 João 3:8) (TRATADOS, 2006b, p. 4)



20 Vale ressaltar que, conforme o evangelista, nessa ocasião Jesus havia passado um grande tempo no deserto, o que faz supor que deveria estar com fome.



A estrutura desse Reino é bastante definida, isto é, ele não é entendido como uma condição pessoal íntima. Seu Rei é Jesus Cristo. Ele governa desde o céu com 144.000 regentes associados21, escolhidos dentre a humanidade desde o início do Cristianismo. O Reino tem súditos na terra, as Testemunhas de Jeová. As leis desse Reino estão manifestas na Bíblia. Tanto seu Rei como todos os seus governantes associados e súditos são responsáveis perante Deus de defendê-las e viver em harmonia com elas. Assim, Deus vem em primeiro lugar na vida dos governantes e dos súditos do Reino. Portanto, o Reino é uma estrutura marcantemente teocrática.

Novamente, é possível constatar a similaridade do papel atribuído pelas Testemunhas de Jeová a Jesus Cristo, e o papel atribuído a Adolf Hitler por ele mesmo e pelos apoiadores do nazismo. Consequentemente, seria inconcebível a uma Testemunha de Jeová prestar qualquer tipo de apoio a Hitler, que, por direito, caberia só a Jesus Cristo, a iniciar pela saudação Heil Hitler.

Conforme já apresentado, segundo a cronologia das Testemunhas de Jeová, em 1914 terminou um período chamado “tempo designado das nações”. Este conceito foi desde o princípio uma das pedras fundamentais da construção doutrinária do grupo. A partir de então, todos os sistemas políticos do mundo estão vivenciando seus últimos dias, que culminarão no conflito final tendo de um lado o Diabo, seus demônios e seu sistema político e religioso, e de outro, Jesus Cristo e suas forças celestiais. O clímax desse conflito será a batalha do “Armagedom”22, na qual serão preservados apenas aqueles que tiverem demonstrado sua lealdade até o fim. (TRATADOS, 2000c, p. 286)



21 No vocabulário das Testemunhas de Jeová, esses regentes são chamados de “Ungidos”. A pertinência a esse grupo é de caráter íntimo e individual. Conquanto continuem fiéis em sua vida na Terra, serão recebidos no céu para uma existência espiritual, na qual trabalharão com “Reis e Sacerdotes” ao lado de Cristo. Os demais, cujo número é indeterminado, são chamados de “Grande Multidão e permanecerão na Terra, como humanos no paraíso restaurado.

22 Ou Har-Magedom


O final do Armagedom marca o início de um período de 1000 anos nos quais a regência do Rei do Reino de Deus, Jesus Cristo, se estenderá à terra. Vale sinalizar aqui que essa crença também os colocaria em confronto direto com o Terceiro Reich, que apregoava entre seus propósitos o estabelecimento de um reino de 1000 anos, conforme demonstrado adiante.

Concluindo essa doutrina escatológica, durante o período milenar do Reino de Deus sob Jesus Cristo aguardado pelas Testemunhas de Jeová, não haverá influência do Diabo. Ele permanecerá vivo, mas impedido de quaisquer ações. Neste período de 1000 anos, aos que tiverem sobrevivido por proteção divina na batalha do Armagedom, serão ajuntados àqueles a quem Deus ressuscitará dos mortos, como os antigos servos de Deus, Abraão, Moisés, Davi, etc, e outros que não tiveram a oportunidade de manifestar sua posição na questão da soberania universal, justamente para que a tenham. A terra será restaurada às condições paradisíacas originais. No final desse período milenar, Satanás será libertado, e atrairá a si aqueles que finalmente não se decidirem a favor da soberania de Deus. Por fim, todos esses serão eliminados, e os benefícios possibilitados pelo sacrifício de Cristo serão plenamente recebidos pelo restante fiel da humanidade. O propósito de Deus terá alcançado sua plena realização: reafirmar a soberania de Deus e encaminhar a humanidade para uma vida livre das consequências da rebelião original, nas mesmas condições do início da criação, antes da rebelião.

Em resumo, todos os acontecimentos históricos e pessoais relacionam-se de alguma forma ao propósito de Deus, estabelecido logo após o pecado original, que, segundo eles, poderia ser também o tema da Bíblia: o restabelecimento da soberania universal de Deus através de seu Reino, cujo Rei é Jesus Cristo, e o livramento da humanidade dos efeitos do pecado. (TRATADOS, 2012, p. 10)

Não é difícil inferir o impacto que esses conceitos tiveram (e têm) sobre todas as atividades dos membros. Particularmente, é possível antever que não haveria acordo possível, ou qualquer tipo de concessão ou compromisso entre eles e o governo nazista. Afinal, cada ação lhes dá a oportunidade de responder à seguinte pergunta: ‘a qual soberania demonstro lealdade ao fazer isso?’ Essencialmente, ela está presente em todo seu corpo de doutrinas e normas de conduta.


Baseadas nessas premissas fundamentais, e tendo como força propulsora a questão da soberania universal, suas doutrinas determinaram comportamentos que tiveram, quer uma relação direta para o confronto, quer uma contribuição indireta para ele. Um deles, talvez o mais importante nesse exame, é sua posição com relação aos governos e sistemas políticos. À luz das crenças apresentadas, e devido ao fato de terem que viver em sociedade com pessoas de outras crenças, as Testemunhas de Jeová adotaram como norma de conduta política a neutralidade.

Assim como outras doutrinas, o conceito de neutralidade sofreu ajustes desde o estabelecimento do grupo em 1870. Durante a primeira Guerra Mundial, por exemplo, estava claro para o grupo que não poderiam violar o mandamento de ‘não matar’. Não obstante, como visto, a decisão de até que ponto poderiam envolver-se no confronto, variou entre os membros, alguns aceitando atividades que não envolvessem o uso de armas. Entretanto, no período entre as guerras, estabeleceu-se claramente que além da questão do derramamento de sangue, havia a questão da neutralidade. O envolvimento no conflito, independentemente do risco de haver derramamento de sangue, seria uma indicação de apoio, e, portanto uma violação da neutralidade. O conceito de neutralidade ampliou-se no grupo, e em 1939 foi publicado no artigo “Neutrality” (Neutralidade). Seguem alguns excertos, essenciais para este estudo:

Pg. 9: Ninguém pode ser um soldado de Jesus Cristo e, ao mesmo tempo,

um soldado da nação que está sob a supervisão do inimigo de Deus, o Diabo. Por isso, o cristão não se envolve com as coisas deste mundo.

A guerra de uma nação contra outra nação da terra não é a luta dos seguidores de Jesus Cristo. Se as nações deste mundo decidem lutar,

esse é um assunto inteiramente delas, e em hipótese alguma é o caso de

alguém que tenha feito um pacto de ser fiel a Deus Todo-Poderoso e seu

Rei e Reino se envolver.

O cristão deve ser totalmente neutro, e isso sem levar em conta o seu

local de nascimento ou nacionalidade.

Pg. 10: O fato de homens e autoridades do mundo não entenderem e

apreciarem a distinção clara entre as nações deste mundo e o grande

governo teocrático de Jeová Deus por Jesus Cristo não é desculpa para

um cristão ceder às demandas das nações do mundo.

Pg. 19: As Escrituras não fornecem nenhum precedente ou autoridade para um cristão se envolver em guerra por uma nação contra outra, pela razão manifesta de que todas essas nações são contra o grande governo teocrático e, portanto, a luta entre as nações não é a luta daquele que está em um pacto para fazer a vontade do Deus Todo-Poderoso.

Pg. 20: Na Alemanha há alguns cristãos que são verdadeira e plenamente o povo da aliança de Deus. Por que eles deveriam lutar por Hitler e seus gângsteres que desafiam o Deus Todo-Poderoso e perseguem aqueles que servem a Jeová Deus e de Cristo Jesus? Alguns desses cristãos fiéis têm sido recentemente, como a imprensa anuncia, executados, ou seja, condenados à morte, porque não portam armas sob o comando de Hitler. Assim, aquele que foi executado provou sua integridade e fidelidade para com o grande governo teocrático e tem garantida a ressurreição e a vida eterna; que jamais serão alcançadas por gângsteres como Hitler.

Pg. 22: Os do povo da aliança de Deus não são pacifistas, assim como também Deus e Cristo não são pacifistas.

Pg. 23: Sendo inteiramente neutros para como as nações da terra, as testemunhas de Jeová não oram a Deus por um governante político em detrimento de outro.

Pg. 30: A posição do verdadeiro seguidor de Cristo Jesus está claramente estabelecida nas Escrituras. Este seguidor de Cristo Jesus não pode fazer transigência. Ou ele é a favor da teocracia, ou é contra seu governo justo. (SOCIETY, 1939a, p. Indicadas) Tradução e grifos do autor.

Não obstante o evidente esforço de apresentar com clareza a posição de ‘neutralidade’ do grupo, há que se considerar a dificuldade em fazê-lo, pois, numa análise crítica, o próprio conceito de neutralidade é bastante elusivo, ou até, conforme alguns autores como Ravitch, “a neutralidade não existe no contexto religioso”. (RAVITCH, 2007, pp. 13, 14) No mínimo, seria ingênuo supor que a postura de ‘neutralidade’ adotada acima representaria algum grau de proteção diante de um partido político totalitarista qualquer. (KING, 1982, p. 138) A proposta ‘neutralidade’ do grupo seria na verdade vista como uma afronta, pelo simples fato de que o grupo isenta se de dar seu apoio motivado pela subordinação a um outro centro de lealdade, qualquer que seja, humano ou não – o que, para todos os fins práticos, é deslealdade, e, portanto, não é neutralidade.

Entretanto, para os fins dessa consideração, mais importante do que a busca de uma definição epistemológica do termo, que iria além da proposta desse trabalho, é a análise das consequências de sua aplicação tal como entendida pelo grupo. Apenas para ilustrar, no campo de concentração para mulheres de Ravensbrück, as prisioneiras eram obrigadas a realizar trabalhos para a empresa Siemens, na fabricação de componentes para os mísseis V1 e V2. Também lá existia uma confecção de uniformes para os membros da SS e da Wehrmacht (Forças Armadas). (MINESOTA, 2009) As prisioneiras Testemunhas de Jeová se recusavam a trabalhar nessas atividades, que consideravam uma violação de sua neutralidade, por serem uma contribuição direta aos esforços de guerra. De fato, muitas haviam sido enviadas a este campo por se recusarem a prestar a saudação nazista Heil Hitler23, que também consideravam uma violação de neutralidade. Ao mesmo tempo, porém, eram designadas para tarefas de limpeza doméstica e cuidados dos filhos nas casas dos membros da SS, por serem “absolutamente honestas e dignas de confiança”, tarefa que aceitavam sem sentirem estar violando suas consciências. (SAIDEL, 2009, p. 52) Alguns outros casos serão apresentados no capítulo 3.

Relacionados à neutralidade, porém, outras crenças e comportamentos são também dignos de nota, no sentido de fazer com que as Testemunhas de Jeová não fossem vistas com simpatia pela população em geral, e particularmente por membros de outras religiões. Nesse contexto estão, por exemplo, o intenso proselitismo de porta em porta e a não participação em cerimônias populares, como o Natal e aniversários. Também, embora não vivam em isolamento e não sejam impedidos de associarem-se com outras pessoas no trabalho, escola, etc., seu círculo de amizades em geral se restringe a membros de sua própria organização, superando até os vínculos com familiares que não compartilham sua fé. O casamento com alguém que não pertença ao próprio grupo é fortemente desencorajado, assim como a dedicação ao ensino superior ou carreiras que demandem extrema dedicação. (TRATADOS, 2013, p. 9 a 14)

Por trás dessas medidas está a leitura que fazem da injunção bíblica de ‘não fazerem parte do mundo’, a qual tem um profundo efeito em todo o modo de vida dos membros. Conforme explicado numa de suas publicações:

Numa oração a Deus, Jesus disse a respeito de seus discípulos: “Tenho lhes dado a tua palavra, mas o mundo os tem odiado, porque não fazem parte do mundo, assim como eu não faço parte do mundo. Solicito-te, não que os tires do mundo, mas que vigies sobre eles, por causa do iníquo. Não fazem parte do mundo, assim como eu não faço parte do mundo.” (João 17:14-16) Talvez estejamos determinados a manter-nos separados do mundo em assuntos maiores, como a neutralidade, costumes e feriados religiosos, e imoralidade. E em assuntos menores? Será que, mesmo sem perceber, nos deixamos influenciar pelos modos do mundo? Por exemplo, se não tivermos cuidado, poderemos facilmente começar a nos vestir de modo indigno e inapropriado. (TRATADOS, 2005, p. 29) Grifo acrescentado.



23 Conforme justificam, a saudação Heil Hitler (Salve Hitler), implica em atribuir a Hitler o papel de Salvador, que reservam exclusivamente a Cristo. (TRATADOS, 1993, p. 196)




É particularmente importante nesse ponto compreender o sentido que dão à palavra “mundo”. Conforme explicado em sua obra Estudo Perspicaz das Escrituras:

Mundo: Este é o termo costumeiro usado na tradução do termo grego kó·smos em todas as ocorrências nas Escrituras Gregas Cristãs, exceto em 1 Pedro 3:3, onde é vertido “adorno”. “Mundo” pode significar (1) a humanidade como um todo, à parte da sua condição moral ou modo de vida, (2) a estrutura das circunstâncias humanas em que a pessoa nasce e em que vive (e, neste sentido, é às vezes bastante similar ao termo grego ai·ón, “sistema de coisas”), ou (3) as massas da humanidade à parte dos servos aprovados de Jeová. (TRATADOS, 2000b, p. 38)

É esse terceiro sentido que justifica seu comportamento interpretado como separatista. Conforme continua a mesma obra:

Estes textos [entre eles João 17:14-16, nota do autor] não se referem simplesmente à humanidade, da qual os discípulos de Jesus faziam parte, mas a toda a   sociedade humana organizada fora da verdadeira congregação cristã. Grifo acrescentado.

É possível observar, portanto, que a visão de sociedade das Testemunhas de Jeová é bastante dicotômica: basicamente existe seu grupo e o ‘mundo’. A elas compete o trabalho de defender a soberania de Deus, e convencer tantos quantos puderem do ‘mundo’ a fazer o mesmo. Ao mesmo tempo, a participação em atividades que entendem ser contra a orientação bíblica, os identificaria como sendo parte da ‘sociedade... fora da verdadeira congregação cristã’, ou seja, “parte do mundo”, que não defende a soberania de Deus.

À luz desse dever fundamental de defender incondicionalmente a soberania de Deus, como se dá a relação das Testemunhas de Jeová com os governos seculares? Explicam:

Como devemos considerar os governantes seculares no mundo? Paulo respondeu a essa pergunta ao escrever: “Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores, pois não há autoridade exceto por Deus; as autoridades existentes acham-se colocadas por Deus nas suas posições relativas.” (Romanos 13:1, 2) Os humanos ocupam posições “relativas” de autoridade (superiores ou inferiores com relação a uns e a outros, mas sempre inferiores a Jeová), porque o Todo-Poderoso lhes permite isso. O cristão sujeita-se à autoridade secular por ser isso um aspecto da sua obediência a Jeová. (TRATADOS, 2002, p. 17)

Assim, a obediência à autoridade secular é prestada independentemente da autoridade em si mesma. O motivo da obediência é superior à própria autoridade. A consequência natural dessa posição é que estão dispensados dessa obediência quando esta autoridade demanda ações que violem a autoridade maior. Em outras palavras, todo o comportamento relaciona-se à mencionada questão da “soberania universal”. Nem a preservação da vida, nem muito menos da estrutura organizacional da entidade, que, como veremos, foi fundamental para outros grupos, estão acima desse dever de lealdade.

Tendo analisado esse panorama ideológico das Testemunhas de Jeová, é interessante considerar agora o contexto histórico-religioso à qual esta ideologia foi submetida durante o regime nazista, com algumas comparações com outros grupos religiosos: os dois majoritários e alguns de dimensões e origem semelhantes às Testemunhas de Jeová.


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2. O contexto religioso na Alemanha nazista 


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2.1 Desenvolvimento da ideologia nazista

  1. Desde a reforma protestante iniciada por Martinho Lutero (1483–1546) em 1517, dois grupos religiosos majoritários compunham a população alemã: católicos e protestantes.

  2. Durante a década de 1930, dos aproximadamente 65.000.000 a 67.000.000 de habitantes, a grande maioria pertencia a um desses grupos, sendo que cerca de 40.000.000 professavam-se protestantes, divididos em 28 igrejas provinciais, e 21.000.000 católicos.

  3.  Cerca de 5% da população dividia-se entre os que não tinham nenhuma filiação religiosa, sendo 3,5% deístas, e 1% ateus. (EVANS, 2013, p. 626)

  4. Aproximadamente 620.000 (menos de 1%), eram membros de religiões menores, nos seguintes valores aproximados:
     a Nova Igreja Apostólica (250.000),
     os Adventistas do Sétimo Dia (36.000),
     as Testemunhas de Jeová (24.000),
     a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (16.500)
     e a Primeira Igreja de Cristo, Cientista.

  5.  Os demais dividiam-se em membros de igrejas reunidas sob a União das Igrejas Livres da Alemanha, entre as quais os batistas e os metodistas. (KING, 1982, p. b)

  6. A população de judeus era de cerca de 505.000 pessoas. (MUSEUM, 2015, p. 1)

  7. Antes de aprofundar, porém, uma análise da ideologia nazista como religião, e da relação dele com as religiões, convém um breve retrospecto dos fatos que o conduziram ao poder, com ênfase em elementos que serão retomados na análise do conflito.

  8. Sob a república de Weimar (1919–1933), as religiões tinham proteção legal na Alemanha, e as religiões minoritárias viviam um período de considerável crescimento.

  9.  Não apenas tinham o direito assegurado de reunir-se e exercer seus serviços religiosos, como também eram registradas formalmente como entidade caritativas, e, como tais, isentas de alguns impostos.

  10. Além disso, caso seus membros fossem tratados de maneira hostil por quaisquer grupos, tinham o direito à proteção das autoridades públicas e normalmente o recebiam. Ademais, o artigo 114 da República de Weimar garantia aos Deístas.

  11.  Gottgläubigers: termo nazista para aqueles que rompiam suas filiações religiosas, mas continuavam acreditando em Jesus e em Deus.

  12.  Diferente do comunismo, o nazismo não impunha o ateísmo. 

  13. cidadãos presos, independente de sua religião, que fossem julgados dentro de vinte e quatro horas. (KING, 1982, p. 23)

  14. O poder exercido pela República de Weimar daria lugar a um partido político que se organizava desde o final da Primeira Guerra Mundial, o Partido dos Trabalhadores Alemães.

  15.  Adolf Hitler, nascido na Áustria e que havia sido combatente na Primeira Guerra Mundial, associou-se ao partido e, em 1920, era o responsável por sua propaganda.

  16.  Numa noite decisiva para o partido, 24 de fevereiro de 1920, ele atuou como orador, e, conforme sua própria descrição feita posteriormente:


Comecei, então, a expor o programa [do Partido], ponto por ponto. Depois que expliquei as vinte e cinco teses do nosso movimento, senti que tinha diante de mim uma massa popular conquistada às novas ideias, a uma nova crença e animada de uma nova força de vontade. A proporção que, depois de quase quatro horas de discussões, a sala começou a esvaziar-se, senti que as bases do movimento estavam lançadas no coração do povo. Estava ateado o fogo de um movimento que, com o auxílio da espada, haveria de restaurar a liberdade e a vida da nação alemã. (HITLER, 1941, p. 508) Tradução do autor.




HITLER EM ASCENÇÃO POLÍTICA

  1. O programa mencionado compunha-se de 25 teses que resumiam as propostas do Partido dos Trabalhadores.

  2. Com apenas algumas poucas manifestações em contrário, o programa foi dado como adotado (e “inalterável” como Hitler diria mais à frente)

  3. em 1o de abril de 1920, mesmo dia em que o partido passou a ser nomeado Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães.

  4. Conforme pondera William L. Shirer, o programa era uma falácia, um engodo, e foi ridicularizado por vários autores que escreveram sobre a Alemanha.

  5.  As propostas eram totalmente genéricas e dúbias, ficando sujeitas a várias possíveis interpretações.

  6. Apesar disso, junto com os princípios enunciados do Mein Kampf, obra que Hitler escreveria mais adiante, constituiriam uma justificativa ideológica para várias atrocidades que seriam cometidas pelo partido nazista no futuro próximo. (SHIRER, 1962, p. 75)

  7. No contexto desta pesquisa, é importante destacar a tese 24, que dizia: Exigimos liberdade para todas as denominações religiosas no Estado, desde que não ameacem a sua existência e não ofendem os sentimentos morais da raça alemã.

  8.  O Partido, como tal, apoia o cristianismo positivo, mas não se compromete a nenhuma denominação particular.

  9. Combate o espírito judaico-materialista dentro e fora de nós, e está convencido de que o nosso país pode alcançar a saúde permanente apenas a partir de dentro, com base no princípio: o interesse comum precede o interesse individual. (HISTORICAL MUSEUM, 1920, p. Programme of NSDAP) Tradução do autor.

  10. É possível observar que o texto é bastante ambíguo, e não representava, de fato, nenhuma garantia explícita de liberdade.

  11. Ao contrário, ele contém a essência do que em breve seriam algumas das justificativas para os esforços de supressão para vários grupos religiosos – bastaria caracterizá-los como uma ‘ameaça ao Partido’, ou ‘ofensivos aos sentimentos morais da raça alemã’, ambos critérios totalmente subjetivos.

  12. Daria a Hitler, na verdade, as condições para que ele adotasse qualquer atitude que servisse aos seus propósitos políticos imediatos.

  13. Apesar disso, parecia não haver motivos questionar essa ambiguidade, e praticamente ninguém o fez. (CONWAY, 1968, p. 8)

  14. Com uma oratória convencedora, e uma forte determinação de dar ao partido uma participação decisiva na Alemanha, Hitler trabalhou muito para conseguir fundos, vencer rivalidades internas e estabelecer-se como o líder do partido, o que de fato aconteceu, em julho de 1921.

  15. Associaram-se a ele também nessa época alguns que tiveram considerável influência em sua carreira política, como Rudolf Hess, amigo íntimo e secretário, Alfred Rosenberg, aclamado como o “líder intelectual” do partido, Hermann Göring, que viria a ser o comandante-chefe da força aérea alemã e Ernest Röhm, que seria o chefe da milícia armada do partido, a SA (abreviação de Sturmabteilung (Destacamento Tempestade), cujos membros eram também conhecidos por camisas-pardas.

  16.  Nesta mesma época, as coisas não iam bem para República de Weimar. Em abril de 1921 os Aliados apresentaram a exigência de reparação cujo valor atualizado para 2015 seria de US$ 442 bilhões; o Marco alemão, cotado anteriormente a quatro por dólar, chegaria em pouco tempo a quatrocentos por dólar. (SHIRER, 1962, p. 91)

  17. Seguindo seu plano de alcançar o poder, e favorecido pela desorganização no governo e pela situação econômica adversa, Hitler e seus principais apoiadores pretenderam dar início a uma revolução em 8 de novembro de 1923, no que veio a ser conhecido como o Putsch (golpe) da Cervejaria, em Munique. As cervejarias eram locais comuns de reuniões de pessoas para socialização, discussões políticas, etc. A cervejaria em questão é a Bürgerbräukeller, em Munique, que ganhou forte conexão com o partido nazista.

  18. O objetivo era tomar o poder do governo Bávaro, mas o golpe fracassou e Hitler foi condenado por traição, sendo sua pena prisão de quatro anos.

  19. Longe de prejudicá-lo, porém, o golpe serviu para dar a Hitler a projeção nacional que ele jamais tivera até então, como herói e patriota – mesmo à custa de dezesseis apoiadores mortos no embate com a polícia, aos quais ele abandonou à própria sorte. (SHIRER, 1962, p. 134)

  20. A prisão que se seguiu, na qual ele seria tratado com honra, foi também providencial, pois proveu-lhe o tempo para ler, refletir nas causas de seu fracasso, receber visitas, e, mais importante, para escrever o livro no qual ele estabeleceu e ampliou seus ideais de governo, o Mein Kampf, publicado em 1925. O primeiro volume. O segundo seria publicado em 1926.

  21.  Apesar do trabalho de edição, a obra era muito pouco literária, desconexa e incoerente – Hitler era um grande orador, mas um péssimo escritor. (EVANS, 2010, p. 254)

  22. O historiador William Shirer afirma que mesmo figuras importantes do partido admitiram não ter conseguido “chegar ao fim de suas 782 empoladas páginas”. (SHIRER, 1962, p. 133)

  23. Entretanto, suas principais ideias estavam claramente expostas nele, a saber: os judeus eram inimigos jurados da nação alemã, a superioridade ariana era inquestionável e o estado soviético deveria ser anexado ao alemão, entre outras.

  24. Com o avanço do nazismo, o Mein Kampf só perdeu para a Bíblia em termos de distribuição, e tornou Hitler milionário.  Apenas durante 1933, foram vendidos um milhão de exemplares. Não possuir um exemplar dele era praticamente um ato de traição, e era um presente de casamento e de formatura praticamente obrigatório. Muito distribuído, mas muito pouco lido.

  25.  E, conforme afirma Shirer, ‘se mais alemães não nazistas o tivessem lido antes de 1933, e se os estadistas de todo o mundo tivessem dado atenção a ele, tanto a Alemanha quanto os Aliados poderiam ter sido poupados da catástrofe’. (SHIRER, 1962, p. 134)


HITLER APROVEITA OPORTUNIDADES
  1. Hitler havia sido condenado a quatro anos de prisão, porém saiu cerca nove meses depois, em 20 de dezembro de 1924.

  2.  O partido nazista estava desestruturado, mas, com a ajuda de Joseph Goebbels, que se tornou um orador quase tão persuasivo como o próprio Hitler, e com uma capacidade literária que ele soube usar com a imprensa, entre 1927 e 1928 o partido voltou a consolidar-se e atrair filiados em várias regiões da Alemanha, inclusive nas rurais. (SHIRER, 1962, p. 200)

  3. Em julho de 1929 assumiu sua primeira municipalidade, com a cidade de Coburg.

  4. A quase onipresença da suástica nos eventos, as campanhas e congressos bem organizados, com a ostensiva presença dos camisas-pardas, os discursos inflamados, e, principalmente, a forte centralização na figura de Hitler, inclusive com adoção da saudação Heil Hitler (com ou sem sua presença), transmitiam a imagem de um partido com uma força e organização formidáveis. (EVANS, 2010, p. 271)

  5. Hitler soube aproveitar bem esse período de vitórias e exposição do Partido.

  6.  Tanto a sede como sua casa foram situadas em propriedades de grande luxo, em Munique. Igualmente, procedeu uma série de reformulações na direção do partido, entre as quais a designação de Joseph Goebbels como o chefe da propaganda.

  7.  Mais de mil manifestações foram organizadas antes das eleições de 1930. A atividade intensa do Partido não foi a única razão do rápido aumento de sua aceitação pela população.

  8. O pano de fundo da crise financeira mundial de 1929 foi bastante bem aproveitado por Hitler e a dirigentes do Partido.

  9. A quebra da Bolsa de Nova York em 24 de outubro de 1929 teve um profundo impacto econômico e psicológico na Alemanha, há muito ressentida com os termos estabelecidos no Tratado de Versalhes. 

  10. O Tratado de Versalhes (1919) pôs formalmente fim à Primeira Guerra Mundial, e estabeleceu uma série de sanções à Alemanha, incluindo uma dívida financeira altíssima e perda de territórios, o que causou choque e humilhação à população alemã. 

  11. A barreira de três milhões de desempregados foi ultrapassada, e em 1932 já eram mais de cinco milhões.

  12. O sentimento geral era de desânimo, agravado pelas falências e suicídios recorrentes.

  13.  Na análise do biógrafo Joachim Fest, o que fez Hitler sobressair-se aos adversários e usar a seu favor este cenário de caos, foi apelar para além da necessidade financeira imediata dos cidadãos.

  14. Segundo Fest (2005a, p. 295), A habilidade de Hitler consistiu justamente em se situar, nos seus ruidosos apelos, além das contradições econômicas e utilizar sobretudo os interesses materiais para se distinguir eficazmente de seus adversários.

  15.  “Não prometo felicidade e prosperidade,” bradava ele às vezes. “A única coisa que posso dizer é que ... não temos o direito de exclamar ‘Alemanha’ quando milhões de nós estão desempregados e nem ao menos têm o que vestir”.

  16.  Sua superioridade provinha também do fato de ter compreendido que a atitude no homem não obedece exclusivamente a motivos econômicos.

  17.  Ele se baseava sobretudo na necessidade de ter uma razão pessoal para existir. Grifo acrescentado.

  18. Esse tema será retomado no próximo item, mas é possível identificar desde já nessa visão de Hitler os elementos característicos de uma religião civil, à medida em que o Estado é que proporcionaria aos cidadãos as ‘razões pessoais para existência’.

  19.  É possível identificar aqui a proposição de Jean-Jacques Rousseau sobre a religião civil, que seria segundo ele uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos compete ao soberano fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom cidadão ou súdito fiel. (ROUSSEAU, 1973, p. 152)

  20. Essa posição, algo incipiente a essa altura do desenvolvimento do estado nazista, ganharia proporções de enormes consequências no confronto com grupos divergentes, em particular aqui, às Testemunhas de Jeová.

  21. No cenário de caos disparado pela quebra da bolsa de valores de Nova York, outros políticos tomaram decisões que voluntariamente ou não contribuiriam para a ascensão do partido nazista.

  22.  O então chanceler Hermann Muller renunciou e foi substituído por Heinrich Brüning em março de 1930, que decretou estado de emergência e convenceu o presidente Hindenburg a dissolver o Parlamento e marcar novas eleições.

  23.  O responsável pela propaganda do partido nazista, Joseph Goebbels, soube tirar proveito desse fato, e organizou uma campanha massiva. Hitler fez 20 grandes discursos em seis semanas.

  24. O resultado foi a conquista de 18,3% dos votos e 107 cadeiras no Parlamento, contra os apenas 2,6% e 12 cadeiras em 1928.

  25.  A maior parte dos eleitores eram de classe média baixa, a maioria protestantes, mas o apoio de gente da classe mais alta se tornou expressivo.




PRIMEIROS ENVOLVIMENTOS CRISTÃOS COM HITLER

  1. Em 1932 ocorreram as eleições para presidente, e Hitler, que era de nacionalidade austríaca mas obtivera a cidadania alemã, candidatou-se.

  2.  Os candidatos eram: Hindenburg, concorrendo à reeleição, o comunista Ernst Thälmann e Hitler.

  3. No segundo turno Hindenburg foi reeleito com 53% dos votos, mas Hitler conquistou 13 milhões de votos, 2 milhões a mais que no primeiro turno.

  4. O chanceler Brüning tentou conter o avanço do partido nazista convencendo o presidente eleito a proscrever a SA.

  5.  Entretanto, Hitler antecipou-se a essa ação, e selou um pacto com o general Kurt von Schleicher no qual Schleicher não executaria a ordem da proscrição da SA, e Hitler daria o apoio dos nazistas para que Schleicher substituísse Brüning como chanceler.

  6. Através de várias articulações e intrigas, Schleicher conseguiu que o presidente Hindenburg nomeasse Franz von Papen, seu amigo pessoal, como chanceler – a quem Schleicher acreditava poder controlar por trás da cena.

  7. Von Papen e Schleicher mantiveram a promessa a Hitler de suspender o banimento da SA, na esperança de que isso traria para eles o apoio dos nazistas, e até da própria SA caso necessitassem, pois as tropas oficiais eram reduzidas, por conta do Tratado de Versalhes.

  8. Porém, essa manobra “mostrou ser um erro de cálculo desastroso”. (EVANS, 2010, p. 354) O partido nazista ganhava força.

  9. As fileiras da SA só faziam engrossar, atraindo as hordas de desempregados, e logo chegariam a mais de quatrocentos mil. (BARNETT, 1989, p. 148)

  10. Suas manifestações públicas eram cada vez maiores e mais violentas.

  11. Nas eleições de julho de 1932, o partido nazista ganhou 37,4% dos votos, e conquistou 230 cadeiras no Parlamento – de longe o maior partido.

  12. O único partido que oferecia certa relevância era o partido comunista, que voltou a ganhar força em 1932.

  13.  Schleicher chegou a assumir como chanceler, em lugar de Von Papen, mas permaneceu apenas dois meses, e teve que renunciar, vítima de sua própria rede de intrigas.

  14. Assim, o presidente Hindenburg acreditou que acomodaria as coisas nomeando Hitler como chanceler para impedir o avanço comunista, e colocando Von Papen como vice-chanceler, para manter um certo controle sobre a chancelaria.

  15.  Conforme demonstrado pelo que aconteceria, esta estratégia não funcionou. (SZKLARZ, 2014, p. 78) 

  16. Hitler foi empossado como chanceler em 30 de janeiro de 1933, dando início ao Terceiro Reich (império) Alemão. 

  17. Na história da Alemanha, o termo Primeiro Reich é usado para referir-se ao Sacro Império Romano Germânico, uma união de vários territórios na Europa Central, aproximadamente de 800 DC até 1806, durante as Guerras Napoleônicas, quando Francisco II abdicou e dissolveu o império.

  18. O Segundo Reich se refere ao período iniciado com a reunificação dos estados germânicos em 1871, articulada por Bismark, e tendo Guilherme da Prússia como Imperador (kaiser).

  19. Terminou com a derrota da Alemanha na Primeira Guerra, formalmente na assinatura do Tratado de Versalhes, em 1919. 

  20. Para evitar o mesmo erro que cometera no Putsch da Cervejaria, ele queria preservar o apoio do Exército, dos industriais e das Igrejas.

  21.  Ademais, seus passos eram, até certo ponto, limitados pelo Parlamento (Riechstag).

  22.  Porém, Hitler mais uma vez soube tirar proveito de um acontecimento logo após sua posse: em 27 de fevereiro, o parlamento foi incendiado, supostamente por um comunista, Marinus van de Lubbe, que confessou sob tortura.

  23.  Quer ele tenha sido o responsável ou não, a culpa recaiu sobre os comunistas, e Hitler convenceu o presidente Hindenburg a assinar o Decreto de Emergência, que suprimia os direitos individuais dos cidadãos.

  24.  Qualquer cidadão sob suspeita poderia ser imediatamente colocado sob custódia. Os principais alvos eram inicialmente os comunistas, os socialdemocratas e as Testemunhas de Jeová. (SZKLARZ, 2014, p. 86)

  25. Os bandidos, alcoólatras e outros impopulares eram tratados com truculência, e os opositores políticos perdiam seus empregos e eram presos.

  26. Com os empregos tirados também dos judeus, o desemprego diminuiu entre os cidadãos alemães, e, de modo geral, a reação ao novo partido era positiva. 

  27. Mas o partido nazista ainda não tinha a maioria de dois terços de cadeiras no Parlamento. Isso só aconteceu graças ao acordo de Hitler com o Partido do Centro (Católico), segundo o qual Hitler assinaria um tratado com o Vaticano, garantindo a integridade e preservação dos direitos e liberdade da Igreja Católica na Alemanha.

  28. Esse tratado, que será discutido em mais detalhes no item 2.4, foi assinado em 20 de julho entre Hitler e o secretário de Estado do Vaticano, Eugenio Pacelli, futuro Papa Pio XII.

  29.  Este tratado não só eliminou o último obstáculo a Hitler no Parlamento, pois o partido comunista já havia sido banido após o incêndio do Parlamento, como resultou no silêncio das instituições católicas à onda de terror seletivo que já se instalara na Alemanha, além de, naturalmente, conferir uma aura de poder moral ao nazismo. (SZKLARZ, 2014, p. 90)











Hitler venceu as eleições em março, e consolidou seu poder totalitário em junho  de 1934, com a execução de vários oficiais que não eram de sua confiança, no episódio  que passou para a história com o nome de Noite das Facas Longas, em 30 de junho. O ex chanceler Schleicher foi executado, assim como Ernst Röhm, ex-chefe da SA, com outras  dezenas  de  oficiais. O  presidente  Hindenburg já  apresentava  a  saúde  extremamente  abalada, e, na prática, tinha pouquíssima influência nos acontecimentos. Hitler, passando  por cima de prescrições legais, fez promulgar uma lei pela qual as funções de Presidente  do  Reich seriam acrescentadas ao  “Führer (condutor)  e  chanceler  do  Reich”.  (FEST,  2005b, p. 559) Com o falecimento de Hindenburg, em 2 de agosto de 1934, todo o poder  do Estado estava nas mãos de Hitler. 



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2.2 O Nazismo como religião 



Apesar de Hitler ter jurado defender a constituição de Weimar ao ser empossado Chanceler em 30 de janeiro de 1933, inclusive a tese 24 do programa de seu Partido, a política do Terceiro Reich em relação ao relacionamento do Estado com a religião organizada não era clara. Hitler nasceu e cresceu num lar católico, foi educado numa escola católica, mas questionava os princípios do cristianismo tradicional, que para ele haviam sido corrompidos, em favor de ideias que considerava mais modernas e “positivas”, para usar o mesmo termo da tese 24.

Conforme ele defendeu no seu livro Mein Kampf, o cristianismo havia sido adulterado pelo “chamado Partido Cristão” que, segundo ele, “se limitava a mendigar votos dos judeus nas eleições, procurando ajeitar combinações políticas com partidos de judeus ateístas e tudo isso em detrimento do próprio caráter nacional”. Para ele, o verdadeiro cristianismo não era de conciliação, mas de combate.

“A grandeza do Cristianismo não está em qualquer tentativa para

reconciliar-se com as opiniões semelhantes da filosofia dos antigos, mas

na inexorável e fanática proclamação e defesa das suas próprias

doutrinas.(...) O cristianismo não se satisfez em erigir os seus altares,

mas viu-se na contingência de proceder à destruição dos altares dos

pagãos. Só essa fanática intolerância tornou possível construir aquela fé

adamantina que é a condição essencial de sua existência.” (HITLER,

1941, pp. 293, 333, 421)

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É claro que, de um ponto de vista estritamente político, colocar-se francamente contra o cristianismo num país em que 99% da população professa ser cristã (quer católica, quer protestante), não seria prudente. Conforme analisa o historiador Lawrence Rees, Hitler simplesmente reconhecia a realidade prática do mundo em que ele habitava. Ele precisava do máximo de apoio, não importa se de católicos ou protestantes. Assim, seu relacionamento com o cristianismo, de fato, seu relacionamento com as religiões, era apenas oportunístico. Conforme Rees, “não há evidência de que ele próprio, em sua vida pessoal, tenha jamais expressado qualquer crença nos princípios básicos da igreja cristã”. (REES, 2013, p. 135) Seu proposto “cristianismo positivo” visava, portanto, cumprir a delicada tarefa de apresentá-lo como defensor do cristianismo, e, ao mesmo tempo, dar-lhe a flexibilidade de reprimir quaisquer ações das religiões organizadas que não se conciliasse com sua agenda política. (CONWAY, 1968, p. 140) O cristianismo positivo não visava constituir uma terceira opção, a se juntar (ou opor) ao catolicismo e ao protestantismo. Ao contrário, seu interesse era prover valores ao redor dos quais os dois grupos majoritários, ou outros, pudessem se alinhar, especificamente, a rejeição aos judeus e sua ideologia (incluindo o Antigo Testamento da Bíblia), a superioridade da raça ariana e o patriotismo como elemento catalisador, independente da profissão de fé. (STEIGMANN-GALL, 2003, p. 15)

Além deste teor religioso oportunista, Hitler e seus apoiadores buscavam apoio científico, embora de forma tortuosa, na teoria da evolução, de Charles Darwin, na filosofia de Nietzsche e seu Übermensch (além-homem), e no racismo científico de Houston Stewart Chamberlain e Arthur de Gobineau, todas contribuindo para a idealização da superioridade da raça ariana, peça central na proposta nazista. (EVANS, 2010, p. 89) Assim, conforme ele reiterou várias vezes, o nazismo seria baseado na ciência, e não na fé. Nas suas palavras, “o dogma do cristianismo desaparece perante os avanços da ciência”. (EVANS, 2013, p. 627)

Não apenas a tese 24, mas todas as demais, conforme demostrado pela história subsequente, executados como foram pelo Terceiro Reich, trariam consequências desastrosas para milhões de pessoas, dentro e fora da Alemanha. (SHIRER, 1962, p. 75) Assim, à medida que o partido Nacional Socialista ganhou terreno, as mudanças políticas na Alemanha submeteram todas as religiões a um ambiente completamente novo, no qual, conforme ficou cada vez mais claro, não haveria lugar para uma posição neutra.

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Cada questão, mesmo de natureza pessoal, passou a ser encarada de um ponto de vista político – incluindo até as relações matrimoniais. (EVANS, 2013, p. 621)

Conforme a pesquisadora Christine King “Hitler escreveu muito pouco sobre religião em Mein Kampf e velou suas óbvias suspeitas da Cristandade nas suas declarações sobre o quase místico novo papel da política. Uma ideologia política, ele afirmou, deve provocar uma reação religiosa e prover ‘ideais elevados, como único fundamento da moralidade para as massas’”31. (1982, p. 2) A declaração evidentemente indica seu ponto de vista desfavorável à necessidade das religiões formais. Ele próprio

afirma em sua obra Mein Kampf:

Partidos políticos não têm nada a ver com problemas religiosos,

enquanto esses não são hostis à nação e não corrompam a ética e a

moral de sua própria raça. (...) Para o líder político, as doutrinas e

instituições de sua gente deveriam ser sempre invioláveis, do contrário

ele deveria ser um reformador, se tivesse condições para tal. (HITLER,

1941, p. 150) Tradução do autor.

Essa atitude em relação à religião formal era, de fato, compartilhada por muitos alemães, apesar da manutenção dos ritos e costumes. Nos horrores da Primeira Guerra Mundial, os princípios cristãos pareciam não ter tido nenhum significado, uma vez que supostos irmãos de fé matavam-se mutuamente. O apoio dos líderes religiosos ao nacionalismo em ambos os lados das batalhas pareceu a muitos uma evidência de sua hipocrisia. Além disso “a incapacidade das igrejas cristãs explicarem por que a religião do Príncipe da Paz32 não teve poder para evitar a catástrofe dos anos 1914 a 1918 finalmente destruiu as crenças cristãs no coração da geração que observou seus companheiros de fé morrerem tragicamente, na crença de que estavam defendendo a herança cristã de seu país”. (CONWAY, 1968, p. 2)

Assim, essa falta de clareza no posicionamento do relacionamento do partido com as religiões, bem como sua proposta de um ‘cristianismo positivo’, que, conforme Richard Steigman-Gail (2003, p. 15) tinha a proposta superficial de ‘superar as

31 Tradução do autor

32 Termo bíblico que ocorre em Isaías 9:6, referindo-se a Jesus Cristo, conforme entendido pelas igrejas cristãs. (TRATADOS, 1986, p. 13)

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diferenças confessionais e unir o povo alemão em uma única igreja’, aliado ao vácuo espiritual em que muitos se encontravam, propiciaram um terreno fértil para os ideais nazistas. Embora Hitler não tenha pretendido ser um reformador religioso – de fato, era indiferente a questões teológicas – ele ofereceu além de uma explicação plausível às dificuldades da Alemanha pós-guerra, um possível caminho à retomada dos anteriores tempos de glória, e o fez numa linguagem emocional e semirreligiosa, com elementos atraentes para religiosos e não religiosos. Segundo suas próprias palavras, o nacional socialismo se tornaria mais do que uma alternativa política; seria uma forma de conversão, uma nova fé. (RAUSCHNING, 1939, p. 238)

Algumas ações do Partido materializaram essa pretensão. Até elementos da mitologia teutônica passaram a estar presentes em certas celebrações, atraindo especialmente os mais jovens. Apareceram também sincretizados em celebrações de festas religiosas comemoradas pelas igrejas cristãs. Nos sermões de Natal, por exemplo, eram enfatizadas as práticas dos antigos povos germânicos de se reunirem ao redor de uma árvore, cantarem e trocarem presentes para celebrar o retorno do Sol, depois das longas noites do inverno. Hitler era apontado como aquele que estava trazendo luz sobre a Alemanha, após o ‘inverno’ no qual ela havia permanecido desde o fim a Primeira Guerra Mundial. A ele era atribuído o papel ‘messiânico’ de proteger a Alemanha contra o ateísmo comunista e as práticas corruptas atribuídas aos judeus. (CONWAY, 1968, p. 364)

Os dias santos incluíam a comemoração do aniversário do Führer além do que casamentos e batizados nazistas substituíam os correspondentes religiosos. (Figuras 5, 6 e 7) Entre os documentos particulares de Himmler foram encontrados fotos de um batismo do filho de um oficial da SS, com uma descrição da cerimônia. A sala decorada com a bandeira nazista, bétulas e candelabros. Ao centro, um altar com a foto emoldurada de Hitler e uma cópia do Mein Kampf. O cenário era complementado pela presença de três homens da SS, o que ficava ao centro portando uma bandeira. Uma cerimônia fúnebre nazista também foi idealizada, o que causou não poucos conflitos quando jovens membros faleciam, especialmente em cidades menores e mais conservadoras, entre os pais, o clero e os oficiais da SS, quanto a quem determinaria como seria celebrada a cerimônia. (CONWAY, 1968, p. 154) Sob o comando de Himmler, a SS concebeu também sua nova forma de casamento, onde estavam presentes runas,

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uma tigela de fogo, símbolos do Sol, tendo ao fundo a música de Richard Wagner, assim como os batismos e altares nazistas (EVANS, 2013, p. 294)

Figuras 5, 6 e 7 - Batizado, casamento e altar nazistas. (CONWAY, 1968, p. 160)

Alguns líderes no Partido eram francamente anticristãos. Heinrich Himmler, por exemplo, foi grandemente influenciado por Walther Darré33, que acreditava que os teutões medievais haviam se enfraquecido com a conversão ao cristianismo. Os teutões compunham os povos indo-europeus de fala germânica, que habitavam a Europa Setentrional, cuja conversão ao cristianismo iniciou-se no IV século DC, com o trabalho missionário do bispo Úlfilas, que era godo, de origem. Úlfilas traduziu a Bíblia para o idioma gótico, sistematizando o idioma. Era partidário do Arianismo, doutrina proposta e defendida por Arius de Alexandria, no Concílio de Niceia, em 325 DC, segundo a qual Cristo não tem a mesma substância de Deus, o Pai, negando assim a doutrina da Trindade. (SAUSSAYE, 1902, p. 115) Vale ressaltar que neste aspecto em particular a doutrina ariana assemelha-se à cristologia das Testemunhas de Jeová, para quem Cristo



33 Walther Darré serviu como Ministro da Alimentação e Agricultura do Terceiro Reich, e um dos promotores da doutrina Blut and Boden (Sangue e Solo), cuja ênfase era a valorização da etnicidade e da posse e cultivo do solo, celebrando a relação entre as pessoas e terra que elas ocupam.

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não é uma das formas de Deus, mas alguém separado e criado por este. 34(TRATADOS, 1989, p. 16)

Darré suportava uma retomada dos valores religiosos teutônicos, o que atraiu vários grupos, especialmente de jovens, cuja imaginação era ‘incendiada’ em cerimônias e rituais realizados em florestas, longe dos olhos dos pais. Conforme descreve Conway, reunidos ao redor de fogueiras nos acampamentos, não era difícil criar um senso de perigo na escuridão ao redor e invocar um senso de união e confraria para defender a nova Alemanha, reforçada pelos ritmos pulsantes dos hinos nazistas. (CONWAY, 1968, p. 152)

O evento público onde a doutrinação de Hitler e do Partido era mais evidente, sem dúvida eram as cerimônias anuais do partido nazista, realizadas em Nuremberg. (Figura 8) Mais de um milhão de pessoas compareciam e esses eventos, como participantes ou observadores.

Figura 8 - Convenção anual do partido nazista em Nuremberg.35



34 A Encyclopedia Britannica indica apenas as Testemunhas de Jeová como exemplo moderno de cristologia ariana, embora haja divergências em outros detalhes do credo ariano, já que afirmam “adorar o que conhecem”, ao passo que o arianismo afirma que a natureza de Deus é desconhecida. (TRATADOS, 1971, p. 361)

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Representantes de outros países eram encorajados a enviar suas impressões aos seus conterrâneos. As marchas, hinos, desfiles, todos em ordem absolutamente geométrica e cores impressionantes visavam mais do que impactar profundamente toda a sociedade. Construíam também uma demonstração impressionante da eficiência e do apoio incondicionais de todos os segmentos do governo. Todas as cerimônias tinham uma única figura central: Adolf Hitler. (CONWAY, 1968, p. 140)

Esse aparato mítico-litúrgico propiciado pelo Estado, caracterizava o estabelecimento de uma ‘religião civil’, conforme termo inicialmente usado por Jean Jacques Rousseau. (RIVIÈRE, 1989, p. 143) Para Rousseau, a religião civil viabilizaria o contrato social, no qual os cidadãos abrem mão de suas liberdades individuais em troca de conquistarem a liberdade civil. Atuaria como um mecanismo que faz com que os homens se reconheçam como irmãos, impedindo que algo destrua sua sociedade, e que, ao mesmo tempo promova o culto divino à Pátria e às leis. Assim, uma religião civil seria responsável pela “sacralização” do contrato social, pois ela seria:

“uma profissão de fé puramente civil. Cujos artigos compete ao

soberano fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como

sentimentos de sociabilidade, sem os quais é impossível ser bom

cidadão ou súdito fiel. Sem poder obrigar ninguém a crer neles, pode

banir do Estado quem neles não acreditar. Pode bani-lo não como ímpio, mas como insociável, como incapaz de amar sinceramente as leis, a

justiça, e de imolar em caso de necessidade sua vida a seu dever. Se alguém depois de haver reconhecido publicamente esses mesmos

dogmas, comporta-se como se não acreditasse neles, que seja punido de

morte, pois cometeu o maior dos crimes: mentiu perante as leis”.

(ROUSSEAU, 1973, p. 152)

A demanda pelo envolvimento e dedicação do cidadão nos remete uma das definições mais recentes de Bailey para ‘religião implícita’, a saber: comprometimento. Segundo ele explica, comprometimento se refere a “toda a hierarquia de camadas de consciência de que, em qualquer determinado exemplo, pode cair dentro do alcance da expressão”, ou seja, ele pode ser a nível consciente ou subconsciente ou ambos. (BAILEY, 2009, p. 802) Há uma clara semelhança entre o comprometimento dos praticantes de uma religião com seus ritos e crenças, com aquele demonstrado pelos apoiadores de

35 Disponível em http://www.aepeb.be/liege/Croire/connaitre/hitler.htm. Acessado em janeiro de 2016.

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Hitler, durante seu regime. Ainda Bailey explica que um possível sinônimo para a religião implícita, seria “religião civil” – embora este último tenha, na opinião desse autor, uma abrangência menos compreensiva, por se concentrar principalmente nos ritos e ações seculares, que viabilizam, ou reforçam, o ‘comprometimento’ que ele menciona. Segundo Bellah, a religião civil refere-se principalmente a um conjunto de valores e símbolos integrados, sustentados em comum por um grupo de pessoas.

(NESTI, 2005, p. 4401) Este conceito é de interesse para este estudo, por serem os ritos do nazismo tão notórios em sua carga de religiosidade e poder de arrebatamento.

Segundo Rivière, a religião civil “supõe em cada povo a existência de uma dimensão religiosa através da qual ele interpreta sua experiência histórica à luz de princípios éticos que o transcendem”. (Rivière, 1988, p.143). No contexto nazista, é possível identificar claramente vários ingredientes rituais dessa dimensão religiosa. Além dos já citados: Hitler tocava com suas mãos relíquias sagradas e a seguir tocava a bandeira para comunicar-lhe sacralidade. Jurava-se sobre o Mein Kampf, exibia-se bandeiras com sangue de mártires. O crucifixo foi substituído pela foto do Führer

Entoavam-se cânticos afirmando que a bandeira, símbolo fundamental de uma nação, era mais forte que a morte – um dado de caráter fortemente religioso. “Por meio de cada artifício de propaganda ardilosa, o indivíduo era envolto em uma onda de emocionalismo em massa, arquitetada para selar na nação inteira o culto a Hitler, a deidade nazista”, afirma Conway. (CONWAY, 1968, p. 145)

Por exemplo, Rivière cita uma descrição de Jean-Pierre Sironneau das cerimônias realizadas nos congressos do Partido. Observe-se o forte teor religioso da descrição:

"No Congresso do Partido em Nuremberg, exibia-se a 'bandeira

ensanguentada' manchada pelo sangue dos mártires tombados durante

o putsch fracassado de 1923. Durante a cerimônia dita da 'bênção dos

estandartes' no decorrer deste Congresso, Hitler tomava em suas mãos a

relíquia sagrada e tocava a nova bandeira como para comunicar-lhe a

força mágica do antigo fetiche. Depois pronunciava o juramento de

fidelidade aos mortos enquanto os jovens cantavam: 'Nossa bandeira é

mais forte do que a morte ( ... )'. Em 9 de novembro em Munique, dia do

aniversário do putsch de 1923 ( ... ), dois templos da Königsplatz de

Munique abrigavam os dezesseis sarcófagos contendo os restos dos

primeiros mártires do movimento. Uma marcha solene foi realizada da

Königsplatz até a Feldhermhalle, lugar onde haviam sido desfechados os

tiros. Ali, Hitler subiu os degraus cobertos por um tapete vermelho e, de braço erguido, celebrou o sacrifício perfeito das testemunhas do sangue". (RIVIÈRE, 1989, p. 89)

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Rivière cita ainda outra descrição do ritual nazista, e seu efeito, desta vez citando Robert Brasillhach, testemunha ocular e simpatizante do regime:

É noite. O estádio imenso está iluminado apenas por alguns projetores

que permitem imaginar os batalhões compactos das SA vestidos de castanho: no momento exato em que ele (o Führer) entrou no estádio,

mil projetores em torno do recinto iluminaram-se, assestados verticalmente para o céu. São mil pilares azuis que agora o envolvem, como uma janela misteriosa. Serão vistos brilhar durante toda a noite,

do campo, designam o lugar sagrado do mistério nacional e os

organizadores deram a essa assombrosa fantasia o nome de Lichtdom, a catedral da luz. Eis o homem agora de pé em sua tribuna. Desfraldam-se

então as bandeiras. Nem um canto, nem um rufar de tambor... um silêncio sobrenatural e mineral, como o de um espetáculo para astrônomos, num outro planeta. Sob a abóbada rajada de azul até as nuvens, as grandes vagas vermelhas estão apaziguadas. Acredito jamais ter visto em minha vida espetáculo mais prodigioso. (Brasillhach pp. 268, apud (RIVIÈRE, 1989, p. 92))

A ênfase nesse caráter religioso no regime nazista é feita aqui, porque é possível identificá-lo claramente como uma das diferenças ideológicas fundamentais, que estavam na essência do conflito com as Testemunhas de Jeová. Conforme abordado no primeiro capítulo, esse caráter tornaria rigorosamente impossível qualquer espécie de compromisso ideológico, já que representaria, para o grupo, uma negação à sua própria religião e fé. Sua fé e a doutrina nazista, na sua visão, concorrem pelo mesmo espaço. Não seria possível ser Testemunha de Jeová, e, ao mesmo tempo, adotar uma atitude que não fosse de claro repúdio à proposta religiosa-civil nazista. Para elas, seriam posições mutuamente excludentes. Ambos demandam um grau de ‘comprometimento’, para usar a definição de Bailey, que não poderia ser compartilhado. Apoiar o nazismo seria, para elas, uma decisão religiosa, não política. (ELIADE, 1999, p. 77)

Rivière inclusive expõe que esses rituais induziam as massas a um estado quase que de epifania. Segundo ele, “atordoado pelo rufar dos tambores, o compasso das botas, o tinido das armas e a escansão dos slogans, fascinado pelas cores das flâmulas e emblemas, excitado por uma música de metais estridentes, o povo meio em sono hipnótico está então pronto, em unanimidade extática, para deixar-se enfeitiçar pelo mágico supremo. (RIVIÈRE, 1989, p. 93), grifo acrescentado. Testemunhas oculares da época reiteram esse efeito. Uma delas, George Reuter, afirma em sua biografia: “Não demorou muito para que eu mesmo viesse a participar, levado pelo entusiasmo geral. O ar estava repleto de lemas nacionalistas, tais como: “Hoje, a Alemanha é nossa; amanhã,

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o mundo todo será nosso”, e: “A bandeira significa mais do que a morte.” Eu, como adolescente crédulo, os aceitava pelo seu valor aparente.” (REUTER, 1990, p. 17)

Outro testemunho da época do poder religioso do partido nazista sobre os cidadãos é de Ludwig Wurn, membro da SS, que relata:

Nasci na Áustria, em 1920. Meu pai era luterano, minha mãe católica.

Estudei numa escola luterana particular, onde recebi instrução religiosa

de um clérigo. Mas não me foi ensinado a respeito de Jesus Cristo como

Salvador. Dava-se constante ênfase a um “führer [líder] enviado por

Deus”, Adolf Hitler, e a um proposto Império Pan-Germânico. Meu

compêndio mais parecia ser o livro de Hitler Mein Kampf (Minha Luta)

do que a Bíblia. Estudei também o livro de Rosenberg, Der Mythus des 20

Jahrhunderts (O Mito do Século 20), em que ele tentava provar que Jesus Cristo não era judeu, mas sim um loiro ariano! Fiquei convencido de

que Adolf Hitler era realmente um enviado de Deus e, em 1933,

ingressei orgulhosamente na Juventude Hitlerista. Pode imaginar a

minha emoção ao conhecer Hitler pessoalmente. Até hoje me lembro

claramente de como ele me olhou, com aqueles seus olhos

descomunalmente penetrantes. Isso teve um efeito tão profundo em

mim que, ao chegar em casa, eu disse à minha mãe: “De hoje em diante a

minha vida não mais pertence à senhora. Minha vida pertence ao meu

führer, Adolf Hitler. Se eu vir alguém tentando matá-lo, eu me jogarei na

frente dele para salvar-lhe a vida.” (WURM, 1990, p. 11)

Entretanto, o partido não tinha o propósito de abolir a religião formal instituída – pelo menos não a princípio. Não passava despercebido, particularmente a Adolf Hitler, a importância numérica da população religiosa na Alemanha. Conforme mencionado, na década de 30 de cerca de 65.000.000 de alemães, aproximadamente 60.000.000 eram membros registrados em um dos dois maiores grupos religiosos, sendo que cerca de dois terços professavam-se Protestantes. Naturalmente, Hitler tinha interesse político nessa população religiosa. (CONWAY, 1968, p. 5) Por exemplo, quando o General Erich von Ludendorff, que creditava também à Igreja Católica o fracasso alemão na Grande Guerra, incitou Hitler a assumir uma posição antirreligiosa mais clara, esse último respondeu que ‘concordava completamente com ele, mas que precisava tanto dos Católicos da Bavária como dos Protestantes da Prússia para a construção de um grande movimento político’. (REES, 2013, p. 135)

Assim, uma posição ambígua era muito conveniente ao Partido. Permitia que fizesse uso da relação com as Igrejas para alcançar seus objetivos, e controlá-las no que elas representassem alguma ameaça. Por sua parte, as duas igrejas maiores também

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entendiam ter certo poder de negociação. Com a vantagem numérica, seria possível negociar algum tipo de compromisso interessante aos dois lados. Essa possibilidade era reforçada com o fato de Hitler não ter parecido, em princípio, antirreligioso. Ao contrário, muitos religiosos estavam confiantes nele como um guardião contra as forças anticristãs do comunismo, o que lhes assegurava que o partido nazista tinha um fundamento cristão. Isso levou um grande número de devotos a dar seu suporte aos

ideais nazistas. (CONWAY, 1968, p. 7)

Entretanto, a partir de 1930, com a vitória eleitoral do Partido e a publicação de O Mito do Século XX, pelo editor chefe do jornal do Partido Nazista, Alfred Rosenberg, foi ficando mais claro às igrejas que seu relacionamento com o governo seria muito diferente do que se imaginou a princípio. Para muitos no Partido, o livro representava uma espécie de manual ideológico do nazismo, embora o próprio Hitler afirmava não tê

lo lido. (CONWAY, 1968, p. 3) Nele, uma das declarações feita por Rosenberg sobre as igrejas cristãs era a seguinte:

Por causa das loucuras dos galileus, nosso estado foi quase arruinado;

mas agora, graças aos deuses, ele foi salvo. Portanto devemos honrar os deuses e todas as cidades em que ainda há piedade. (...) A grande personalidade de Jesus Cristo, independentemente da forma que poderia ter tomado originalmente, foi distorcida e confundida

imediatamente após a sua morte, com todo o lixo da vida judaica e africana. Roma dominava com grande firmeza e exigia impostos de forma eficiente. Assim, entre as suas populações sujeitas, surgiu o desejo de um libertador e líder dos escravos; daí a lenda de Cristo. Começando na Ásia Menor, este mito Cristo espalhou-se para a Palestina, onde se tornou ligado com os anseios messiânicos dos judeus, e foi finalmente ligado à personalidade de Jesus. Além de suas próprias declarações, foram falsamente atribuídas a ele as palavras e doutrinas dos profetas do oriente próximo e, ironicamente, na forma de uma extensão de antigos preceitos morais arianos (...), dos quais os judeus já haviam se apropriado como parte de seus dez mandamentos. Foi dessa forma que a galileia influenciou todo o oriente próximo.(ROSENBERG, 1930, p. 34)

Vale salientar, porém, que, ainda que visse as religiões majoritárias com interesse e ao mesmo tempo suspeita, o ponto de vista de Hitler era diferente para cada uma delas, e esse ponto de vista influenciou a forma como o relacionamento com elas se conduziria.

Dos católicos Hitler invejava a sólida hierarquia que garantiu sua influência por dois mil anos – para ele muito mais por motivos políticos do que espirituais. A

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infalibilidade do papa, declarada oficialmente como dogma pelo Concílio Vaticano I, em 1870, lhe era muito atraente. O apoio do Papa – ou pelo menos seu silêncio – teria para Hitler um peso inestimável. (CONWAY, 1968, pp. 3, 145) Não obstante, o topo dessa hierarquia ficava em outro país, e em outra pessoa, o que, deste ponto de vista, os tornava rivais.

Por outro lado, os protestantes eram eminentemente alemães, o que os tornava mais acessíveis a seus interesses, e mais de uma vez já haviam atuado como braço do Estado. Faltava a esse grupo, porém, o que sobrava no anterior. Os protestantes não tinham uma hierarquia sólida e única. Ao contrário, as disputas internas, rivalidades e divisões, os tornavam algo desprezíveis aos olhos do Führer. Tudo considerado, porém, os dois grupos tinham elementos que poderiam servir bem aos interesses do Partido. Com uma mensagem que podia ser vista como um aceno de aprovação às religiões, e por enfatizar os aspectos nacionalistas e de um “cristianismo positivo” em sua ideologia, Católicos e Protestantes poderiam ser persuadidos a auxiliar na ascensão do nazismo. Ao mesmo tempo, podiam ver no relacionamento com o nazismo oportunidades de negociar sua sobrevivência. (CONWAY, 1968, p. 4)

Os grupos menores, porém, estavam num contexto muito diferente. Primeiro, porque já eram vistos com suspeita, seja pelo Estado, pela população ou pelos líderes das igrejas majoritárias. Vistos como fanáticos, sem tradição, e tendo poucas ligações históricas com a Alemanha, não eram vistos como tendo algo valioso a oferecer ao Partido e à sociedade. Ignorados, a princípio, por razões práticas, e sem poder de barganha, para garantir sua sobrevivência precisariam eventualmente adotar uma das três possibilidades, ou algum nível de combinação entre elas: ganhar o favor do Partido através de eventuais simpatizantes no governo, operar às ocultas ou resistir a todo custo. (KING, 1982, p. 25) Ademais, devido à proteção legal relativamente inferior com que contavam, e ao fato de terem sua origem normalmente fora da Alemanha, muito cedo se tornaram alvo de suspeitas. (CONWAY, 1968, p. 196)

Seja para as religiões majoritárias ou minoritárias, cedo o Partido organizou-se para dar atenção a esse campo. Afinal todas as igrejas haviam de algum modo falhado em eliminar da Alemanha a causa básica apontada por Hitler para todos os problemas alemães: os judeus. E haviam falhado nessa missão por um motivo: estavam divididos

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em sua lealdade. Apenas os que prestassem lealdade única à pessoa de Adolf Hitler como o messias salvador estariam aptos para a enorme tarefa de reconstruir a Alemanha. (CONWAY, 1968, p. 144)

Para manter o controle sobre as religiões, o Partido aparelhou-se e adaptou seus mecanismos. Quando do desenvolvimento do Partido Nazista, Hitler valeu-se não só da ideologia para conquistar sua ascensão, mas também da força. Inicialmente foram criadas as já mencionadas Divisões de Assalto, as Sturmabteilung, abreviado para SA, também conhecidos como “camisas-pardas”. Não se tratava de uma organização militar propriamente, mas de uma milícia que espalhava terror entre os opositores do partido, por meio de espancamentos, tortura e morte. Era composta por arruaceiros e desempregados, sendo que esses últimos não faltavam na época. Seu cofundador era Ernst Röhm, que prestou seu apoio a Hitler desde o putsch da cervejaria. A SA perseguiu ferozmente as Testemunhas de Jeová.

Conforme mencionado, porém, a SA era um grupo semi-independente, e que nem sempre correspondia aos ideais de Hitler. Ele não deixara de utilizá-los à medida em que as ações do grupo favoreciam sua ascensão, mas tinha consciência de que eram “um bando de combatentes rudes”. (EVANS, 2011, p. 599) O líder da SA, Röhm, não era um político hábil, e contava com muitos inimigos importantes, como Himmler, Goebbels e Göring, todos muito próximos de Hitler. A homossexualidade de Röhm era constantemente trazida ao debate. Embora Hitler inicialmente não desse grande importância à vida privada de Röhm, a situação mudou à medida em que ficou claro para ele que Röhm tinha sua própria agenda, discordando publicamente de Hitler em várias ocasiões, além dos boatos de que Röhm estaria planejando um golpe. Himmler, então comandante de um grupo menor, a SS, que era uma subdivisão da SA via no embate entre Hitler e Röhm uma oportunidade para sua projeção, reforçou esses boatos. Não se sabe até que ponto Hitler foi influenciado pelas manobras de Himmler, a o fato é que Hitler pessoalmente declarou a Röhm que ele estava preso, e, posteriormente ordenou sua execução na prisão, na ‘Noite das Facas Longas’, em 1o de julho de 1934. Segundo Evans ocorreram 85 assassinatos sem julgamento e mais de mil prisões nessa noite. (2011, p. 59)

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Como consequência, as fileiras das SA diminuíram rapidamente, e as SS (Schutzstaffel – tropas de proteção) rapidamente assumiram todas as suas funções. Diferentes das SA, os membros das SS seguiam o padrão estabelecido por seu líder Himmler. As SS eram consideradas uma tropa de elite e a pureza racial era um dos requisitos para a admissão em suas fileiras. Seu lema era “Minha honra chama-se lealdade”, e tornou-se passagem obrigatória de todas as vias de acesso ao poder, infiltrando-se e com o tempo controlando outras instituições, entre elas a Gestapo (Geheime Staatspolizei, Polícia Secreta do Estado), comandada por Heinrich Müller e a SD (Sicherheitsdienst, Serviço de Segurança), sob o comando de Reinhard Heydrich. (FEST, 2005b, p. 556) Tanto a Gestapo como a SD dedicaram muitos esforços na repressão das seitas minoritárias, em particular às Testemunhas de Jeová, usando vários métodos, conforme será relatado adiante.

Além dessas, o partido nazista estabeleceu também outras organizações com o intuito de específico de inculcar a doutrina e treinar a população jovem. Hitler não acreditava na eficiência do sistema educacional da Alemanha. Por isso, a partir de 1933, unificou a direção das escolas no Ministro da Educação do Reich. Os currículos foram alterados para adequarem aos princípios nazistas. Todos os professores, da educação infantil até a universidade, foram treinados e eram obrigados a jurarem obediência a Hitler e a associarem-se ao Partido. Os recalcitrantes eram demitidos.

E educação dos jovens continuava fora da escola, na organização dos Jovens Hitleristas. Insipiente nos anos iniciais do partido, atingindo cerca de 100.000 jovens até 1932, seu número aumentou explosivamente para 2.300.000 em 1933, após a posse de Hitler como chanceler. Grande parte desse número veio com a incorporação de outros grupos de jovens, como o Grupo da Juventude Evangélica, protestante, de 700.000 membros e o Movimento de Fé dos Cristãos Alemães, e, mas adiante, da Associação da Juventude Católica. O responsável perante Hitler pelo treinamento dos jovens era Baldur von Schirach, que aderira o nazismo aos 18 anos, e é descrito por Shirer como um “tolo jovem de vinte e nove anos, que escreveu versos sentimentais em louvor a Hitler (“esse gênio que toca as estrelas”) e seguiu Rosenberg no seu estrambólico paganismo, e

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Streicher36 em seu antissemitismo virulento e se convertera em ditador da juventude do Terceiro Reich.” (SHIRER, 1962, p. 377)

A educação nas doutrinas nazistas começava aos seis anos para os rapazes, quando ele recebia um livro no qual seu progresso de aprendizado era anotado. Aos dez anos, depois de vários testes de atletismo e acampamentos, ele prestava o seguinte juramento:

Diante desta bandeira de sangue, que representa nosso Führer, juro

devotar todas as minhas energias e forças ao salvador de nossa pátria,

Adolf Hitler. Estou disposto a dar minha vida por ele, com a ajuda de Deus.

Dos quatorze aos dezoitos anos, os jovens deveriam participar da Juventude Hitlerista (Hitlerjugend), que para todos os fins era uma organização paramilitar, na qual os jovens recebiam treinamentos sistemáticos em ideologia nazista, esportes e ações militares. Nos fins de 1938, a Juventude Hitlerista somaria quase 8 milhões de membros e a participação se tornou obrigatória em 1939. Os que se sobressaiam eram escolhidos para as universidades, serviço público e postos de direção no Partido. As moças constituíam a União das Jovens Alemãs (Bund Deutcher Mädel), na qual o treinamento enfatizava principalmente seu papel no Terceiro Reich: serem mães sadias de filhos sadios. (SHIRER, 1962, p. 378)

Os membros da Juventude Hitlerista contribuíam com frequência com a SA, Gestapo e SS na delação de quaisquer ações consideradas suspeitas, inclusive de seus pais, ou em manifestações públicas e desfiles. (CONWAY, 1968, p. 127), (MAZOWER, 2013, p. 365)

Depois dessa consideração sobre a ideologia nazista no que se referia à religião, bem como sobre seu aparelhamento para lidar com o que consideraria ameaças

36 Julius Streicher foi o fundador e editor do tabloide sensacionalista Der Stürmer (O Atacante) caracterizado por manchetes berrantes e fortes ataques aos judeus, com caricaturas racistas e histórias fabricadas sobre assassinatos rituais e perversões sexuais. Por seu caráter promíscuo, era visto com repugnância até por outros membro do Partido. O antissemitismo de Streicher, porém, agradava a Hitler (EVANS, 2010, p. 245)

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causadas por motivações religiosas, é interessante para esta análise verificar também como as principais religiões buscaram estratégias para a manutenção de seus preceitos, ou, no pior caso, para sua sobrevivência.


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2.3 A Igreja Protestante e o Nazismo 

Por sua própria origem histórica, as igrejas protestantes viam-se como pilares da  cultura e sociedade alemãs, com uma longa história de lealdade ao Estado, respaldada,  mais  recentemente,  pela  ativa  participação  na  Primeira  Guerra,  quer  como  soldados  combatentes, quer por meio das orações pela  vitória nacional. Essa postura refletia de  modo  explícito  a  do  próprio  fundador  do  movimento,  Martinho  Lutero,  que  era  manifestamente defensor da obediência absoluta à autoridade política. (SHIRER, 1962,  p. 352), (JOHNSON, 2001, p. 369) 

O maior grupo protestante na Alemanha na década de 30 era a Igreja Evangélica  Alemã, composta por vinte e oito igrejas regionais, que incluíam as tradições teológicas  mais importantes: a Luterana, a Reformada (ou Calvinista) e a Unificada. A esse grupo  estavam filiados 62,2 % da população alemã, o que por si só já era um motivo para Hitler  ver aí uma  fonte de apoio importante. Assim, seu apelo  foi deliberadamente dirigido a  valores  compartilhados,  como  o  nacionalismo,  e  a  necessidade  de  uma  liderança  que  salvaguardasse os ‘valores cristãos’ e o ‘bem-estar’, conforme ele postulou no ambíguo  ponto 24 de seu programa do partido, já mencionado, assim como um guardião contra o  ateísmo  comunista. Essa  retórica  ocasionou  que  o  clero  protestante  em  geral  recebeu  muito bem a ascensão de Hitler à chancelaria, em 1933. (CONWAY, 2001, p. 494) Entre  eles estava o pastor luterano Martin Niemöller, que havia sido condecorado com a Cruz  de Ferro na Primeira Guerra Mundial, quando serviu como comandante de submarino, e  posteriormente  se  oporia  ao  regime. (SHIRER,  1962,  p.  353) A  grande  cerimônia  de  celebração  da  chegada  de  Hitler  ao  poder  foi  coordenada  por  Goebbels,  e  ocorreu  na  histórica Igreja da Guarnição, em Potsdam, em 21 de março de 1933. Em frente à Igreja,  Hitler  cumprimentou  teatralmente  o  presidente  Hindenburg. (SHIRER,  1962,  p.  295) (Figura 9)

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Figura 9. Hitler cumprimenta o presidente Hindenburg na cerimônia de posse, realizada na  Igreja Protestante da Guarnição, em Potsdam. Fonte: Site da Rádio Deutsche Welle37 

Entretanto,  a  fragmentação  do  grupo,  causada  inclusive  pelas  diferentes  tradições nele presentes, certamente representava uma  fragilidade aos olhos de Hitler.  Durante a república de Weimar, essas igrejas fizeram alguns movimentos no sentido de  buscar  uma  liderança  comum,  mas  Hitler  atuou  mais  fortemente  nessa  direção  assim  que chegou à chancelaria. Em 14 de julho de 1933 tornou mandatório que essas igrejas  se organizassem numa Igreja Protestante do Reich (ou Igreja Evangélica Alemã) sob um  “bispo  do Reich”. (KING,  1982,  p.  8) O  partido  pressionou-as  a  realizarem  eleições,  no  que  foi  apoiado  pelo  grupo  protestante  Cristãos  Alemães (Deutsche  Christen).  O  candidato apontado pelo partido foi Ludwig Müller, capelão e amigo pessoal de Hitler e  seu conselheiro em assuntos da Igreja Protestante, visto como muitos apenas como um  marionete  do governo. O  candidato  das igrejas era  Friedrich von Bodelschwingh.  Com  amargas disputas internas, e com os apoiadores de Bodelschwingh intimidados pelas SA  e  a Gestapo,  Müller  ganhou  as  eleições,  especialmente  com  o  apoio  do  grupo  Cristãos  Alemães,  que  haviam  se  tornado  francos  apoiadores  do  arianismo  e  do  Estado  autoritário  e  oponentes  a  vários  ensinos  tradicionais  protestantes,  “chegando  até  a  defender a discriminação dos judeus”. (MINERBI, 2009, p. 45) 

                                                        

37 Site:  http://www.dw.com/pt/o-dia-de-potsdam-e-a-encena%C3%A7%C3%A3o-nazista/a-16677538,  acessado em dezembro de 2015

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Para  fazer  frente  a  essa  corrente  e  à  interferência  do  Partido  na soberania da  Igreja, formou-se a Liga Emergencial de Pastores (Pfarrernotbund), da qual originou-se a  Igreja Confessional (Bekennende Kirche), sob a orientação espiritual do pastor Wilhelm Niemöller,  já  em  crescente  conflito  com  o  governo.  Dois  grupos  rivais,  portanto,  afirmavam  constituir  legitimamente  a  igreja  protestante,  o  que  tornou  evidente  que  Müller,  e  por  consequência  Hitler,  fracassaram  em  unificar  as  igrejas  protestantes.  Alguns pastores extremistas, como Reinhardt Krause, que propôs o abandono do Velho  Testamento e a revisão do Novo ‘com a doutrina de Jesus correspondendo inteiramente  às  exigências  do  nazismo’  só  fizeram  afastar  os  protestantes  mais  moderados e  aumentar  as  disputas.  (SHIRER,  1962,  p.  354) Hans  Kerrl,  protestante,  constituído  Ministro  do  Reich  para  Assuntos  da  Igreja, assumiu  as  funções  de  Müller,  e  defendia   

ostensivamente que o ‘cristianismo positivo’ proposto pela ideologia nazista poderia ser  conciliado com a manutenção da divisão protestante Cristãos Alemães, e a aniquilação  da Igreja Confessional. (CONWAY, 1968, p. 131) 

Em  1936 Niemöller,  que  já  era  tido  como  o  principal  porta-voz  da  resistência  protestante  ao  nazismo, dirigiu  um  memorando  a  Hitler  manifestando-se contra  as  tendências anticristãs  do  regime,  denunciando  o  antissemitismo  do  governo  e  reclamando que se pusesse termo à interferência do Estado nas igrejas. Como resultado,  em  1937 a  Igreja  Confessional  foi proscrita  e  declarada  ilegal  pelo  governo,  com  Niemöller e mais cerca de 800 outros pastores presos. Embora condenado a 7 meses de  prisão,  Hitler  ordenou  que  ele  permanecesse  no  campo  de  concentração,  o  que  realmente aconteceu, primeiro no de Sachsenhausen, depois no de Dachau, de onde  foi  libertado apenas em 1945. (CONWAY, 1968, p. 212) 

Mesmo a escalada de violência contra os judeus e a invasão da Polônia, em 1939,  não  foram  suficientes  para  que ações  mais  incisivas  da  liderança  protestante  fosse  tomada.  Ao  contrário,  conforme  registra  Dietrich  Bonhoeffer,  pastor  Luterano e  claramente opositor do regime desde sua formação, quando da declaração de guerra, as  igrejas luteranas proclamaram publicamente: 

"Desde ontem o povo alemão foi chamado para lutar pela terra de seus  

pais, a  fim de que o sangue alemão pudesse  tornar a se unir ao sangue  

alemão. A Igreja Evangélica Alemã se mantém em perfeita solidariedade  

com o destino do povo alemão. A  Igreja acrescenta às armas de aço as  

armas invisíveis  da  palavra  de  Deus.  Unimo-nos,  assim,  nesta  hora,  ao 

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nosso povo, numa prece pelo nosso FUEHRER e pelo REICH, por  todas  

as forças armadas e por todos aqueles que cumprem o seu dever com a  

Pátria". (BONHOEFFER, 2011, p. 277) 

As vitórias alemãs foram saudadas, o aumento de poder da Gestapo foi justificado  como uma necessidade da guerra, e as baixas como uma consequência inevitável dela.  Não  havia  na  ideologia  protestante  substância  para  sustentar  atitudes  contra  o  antissemitismo  ou  para a adoção  de  uma  posição  contra  o governo.  “Do mesmo modo  que em 1914, a explosão da guerra em 1939 demonstrou que a lealdade nacional pesou  mais que a solidariedade cristã”. (CONWAY, 2001, p. 497) 

Conforme  relatado  por  Leo  Stein,  companheiro  de  cela de  Niemöller, com  o  tempo  ele  se  deu  conta  do  erro  em  apoiar  o  partido  nazista  a  princípio,  o  que  talvez  reflita o sentimento de vários outros líderes protestantes.  

“Eu  realmente  acreditava",  Niemöller continuou,  “dado  o  

antissemitismo generalizada  na  Alemanha  na  época,  que  os  judeus  

deveriam  evitar  aspirar  aos  cargos  governamentais  ou  assentos  no  

parlamento  (Riechstag.)  Havia  muitos  judeus,  especialmente  entre  os  

sionistas, que  tomaram uma posição similar. As garantias de Hitler me  

satisfizeram  no  momento.  Por  outro  lado,  eu  odiava  o  crescente  

movimento  ateísta,  que  foi  fomentada  e  promovida  pelos  social 

democratas e os comunistas. Sua hostilidade contra a Igreja me fez fixar  

minhas esperanças em Hitler por um tempo. Eu estou pagando por esse  

erro agora, e não somente eu, mas milhares de outras pessoas como eu.”  

(STEIN, 1941, p. 284) Tradução do autor. 

Niemöller  expressou  esses  sentimentos  em  um  verso  que  se  tornou  famoso,  e  vale ser reproduzida nesse contexto: 

“Quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal,  

eu não era comunista.  

Quando  eles  prenderam  os  sociais-democratas,  eu  calei-me,  porque,  

afinal, eu não era social-democrata.  

Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu  

não era sindicalista.  

Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era  

judeu.  

Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse”

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Há  mais  de  uma  paráfrase  do  poema de  Niemöller.  O seu  ponto  era  que  “os  alemães – em  particular,  os  líderes  das  igrejas  protestantes  – tinham  sido  cúmplices  através de seu silêncio na prisão, perseguição e assassinato de milhões de pessoas pelos  nazistas.” (NIEMÖLLER, 2015). Nas suas próprias palavras: 

Preferimos  ficar em silêncio. É certo que não somos isentos de culpa; e 

pergunto-me  vez  após  vez  o  que  teria  acontecido  se  14.000  ministros  evangélicos  e  as  comunidades  evangélicas,  por  toda  a  Alemanha,  tivessem  defendido  a  verdade  com  suas  próprias  vidas  em  1933  ou  1934,  enquanto  ainda  havia  uma  possibilidade?  Se  tivéssemos  

simplesmente dito para Herman Göring que não era justo jogar 100.000  comunistas  em  campos  de  concentração  para  morrer?  Eu  posso  

imaginar que 30 a 40 mil cristãos evangélicos  teriam sido decapitados,  mas  eu  também  posso  imaginar  que  teriam,  assim,  salvo  de  30  a  40  milhões  de  vidas  - este  é  o  preço  que  temos  de  pagar  agora. 

(NIEMÖLLER, 1947, p. 17) tradução  

Conway  analisa  que  as  poucas  vozes  protestantes  que  se  levantaram  não  representaram  ameaça  considerável ao  Partido,  ou  não  mobilizaram  a  população  protestante, porque, na essência, não havia muito mais do que o interesse em manter a  autonomia do grupo. A raiz de sua oposição não era à política racial do Reich, mas sim  essencialmente  à  interferência  do  Partido  nos  assuntos  da  Igreja. (CONWAY,  2001,  p.  497) (KING, 1982, p. 9) 

A maioria dos pastores protestantes submeteu-se ante o terror nazista e com eles  os  membros  das  igrejas.  Um  dos  mais  proeminentes,  o  Bispo  August  Marahrens,  de  Hannover, declarou, em 1937: “A concepção de vida nacional-socialista é uma doutrina  nacional e política que determina e caracteriza a natureza do homem alemão. Como tal e  igualmente  obrigatória  para  os  cristãos  alemães”.  Em  1938  ele  obrigou  todos  os  pastores de sua diocese a juraram fidelidade ao Führer, e, como consequência a maioria  do  clero  protestante  fez  o  mesmo  juramento.  (GERLACH;  BARNETT,  2000,  p.  127) 

(SHIRER,  1962,  p.  357) Salvo  poucas  e  isoladas  exceções,  não  houve  um  ataque  significante  ao  antissemitismo  nazista.  Uma  dessas  exceções  dignas  de  nota  foi o já  citado pastor Dietrich Bonhoeffer, cofundador da  Igreja Confessional,  teólogo e ativista  que opôs-se a Hitler desde o início. (CONWAY, 1968, p. 338) Foi um dos poucos que não  apoiaram  a  desvalorização  do  Antigo  Testamento  da  Bíblia,  e  reconhecia o débito  das  igrejas  cristãs  com  o  judaísmo.  (LAQUEUR;  BAUMEL,  2001,  p.  497) Bonhoeffer  foi  enforcado em  9  de  abril  de  1945 no  campo  de  concentração  de  Flossenbürg  por  seu 

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envolvimento em vários movimentos de resistência ao nazismo. (EVANS, 2013, pp. 724,  729, 787) 

Com  efeito,  os  dois  terços  da  população  alemã  composta  de  protestantes,  salvo  exceções  pontuais,  não  tinham  em  seus  líderes  uma  motivação  clara  opor-se  ideologicamente ao regime. Conforme analisa Shirer, “um povo que havia entregado tão  facilmente  suas  liberdades  política,  cultural  e  econômica,  não  iria,  com  exceção  de  relativamente  poucos,  morrer  ou  arriscar-se  à  prisão  para  preservar  a  liberdade  religiosa.  O  que  efetivamente  entusiasmava  os  alemães  na  década  de  trinta  eram  os  êxitos retumbantes de Hitler em providenciar empregos, criar prosperidade, restaurar o  poder militar  da  Alemanha  e marchar  de  triunfo  em  triunfo  em  sua  política  exterior.”  (SHIRER, 1962, p. 357) 

Assim, essa análise do movimento protestante face à ideologia nazista demonstra  que tanto o lado mais conservador, representado pela Igreja Confessional, como o mais  liberal, dos Cristãos Alemães, apesar das divergências internas, limitaram sua oposição  ao  partido  naquilo  que esse  último  representava  de ameaça à  sua autonomia,  não aos  seus princípios  teológicos. (KING, 1982, p. 10) De  fato, poucos deles se detiveram para  refletir nas propostas do partido, sistematizadas por Rosenberg, que, em última análise  buscava, na verdade, a substituição de quaisquer ideologias pelas ideologias nazistas e a  justificação do extermínio dos judeus e quaisquer oponentes ao regime. (SHIRER, 1962,  p. 358) 

Conforme  conclui  Conway,  por  conta  dessa  ‘indisposição’  de  tomarem  uma  posição  mais  intransigente  contra  o  nazismo,  muitos  pensadores  protestantes  pós guerra, com a vantagem de uma visão de maior perspectiva, acreditam que essas igrejas  poderiam ter feito mais para evitar que o nazismo fizesse mais vítimas. (CONWAY, 2001,  p. 499) 



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2.4 A Igreja Católica e o Nazismo 

No século  VIII,  no  início  da  dinastia Carolíngia,  Bonifácio  de  Mogúncia  (675  – 754),  um monge beneditino inglês,  estabeleceu  o  catolicismo  na Germânia,  sendo  por  isso chamado o “apóstolo dos germanos” e patrono da Alemanha católica. (NEIL, 2005, p.  1017) Com a reforma de Lutero, em 1517, as regiões norte e leste concentraram a maior 

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parte dos apoiadores do protestantismo, ao passo que o sul e o oeste concentraram os  católicos.  Não  foram  poucos  os  conflitos  entre  católicos  e  protestantes,  e  entre  o  catolicismo  e  o  estado  alemão,  e,  sob  Bismark,  esse  conflito  acentuou-se  com  o  movimento Kulturkampf (Luta pela Cultura). Ávido por subordinar  todos os elementos  da sociedade alemã ao controle estatal, Bismark, em 1872, acabou por proibir a atuação  da igreja católica na educação e em quaisquer discussões de Estado. (CORNWELL, p. 27) 

Em  1887,  porém,  Bismark  estava  desgastado  politicamente,  e  em  busca  de  aliados.  Assim, aceitou que  o novo papa,  Leão XIII, persuadisse alguns membros do partido de  centro  católico  apoiassem  Bismark,  no  parlamento,  em  troca  da  anulação  das  leis  de  1872. (JOHNSON, 2001, p. 564) 

Entretanto,  as  brechas  causadas  pela  Kulturkampf eram  bastante  profundas.  A  acusação  de  que  os  católicos  não  eram  verdadeiros  alemães,  e  que  eram  hostis  ao  espírito germânico deixara uma marca indelével na comunidade católica. Havia portanto  uma ânsia do clero católico de reforçar seus laços com o Estado com vistas a garantir sua  permanência e liberdade  de atuação  na Alemanha. A oportunidade para  dar  um  passo  decisivo nessa direção veio com a Primeira Guerra Mundial. Nenhum grupo excedeu o  clero  católico  em  termos  de  retórica  patriótica.  O  cardeal  Michael  von  Faulhaber,  Arcebispo  de  Munique, afirmou  que  a  guerra para  vingar  o  assassinato  em  Sarajevo  entraria para histórica como o “protótipo da guerra justa”. (JOHNSON, 2001, p. 585).  

Esse esforço de reafirmação de protagonismo prosseguiu durante a República de  Weimar e, de  fato intensificou-se, à medida  que  o  partido  nazista  conquistou  o  poder.   (KING, 1982, p. 13) Conforme o historiador Paul Johnson pondera: 

Foi  essa  ânsia  continuada  por  não  se  expor  à  acusação  de  ser  anti 

germânica  que  levou  a  Igreja  Católica  a  condescender  com  Hitler  e  os  

nazistas.  Tinha  pavor  de  uma  nova  Kulturkampf .  Havia  um  temor  

partilhado pelos bispos alemães, pelo núncio papal, arcebispo Pacelli, e  

pelo  próprio Vaticano,  de  que  uma  segunda  campanha, executada  com  

muito mais ferocidade – e talvez por muito mais tempo – que a primeira,  

conseguiria de fato destruir a Igreja Católica na Alemanha.  Temiam que  

Hitler  criasse  uma  igreja  separatista,  subordinada  ao  Estado,  e  que  a  

imensa  maioria  dos  católicos  (e  do  clero)  alemães  aderisse  a  ela,  

expondo,  desse  modo,  a  fragilidade  da  lealdade  ao  papado,  solapando  

todo  o  conceito  de  triunfalismo  populista  e  inflingindo  danos  

incalculáveis  ao  catolicismo  internacional  por  toda  parte.  (JOHNSON,  

2001, p. 586)

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O conjunto de ações tomadas pela Igreja Católica e seus representantes durante a  ascensão  do  Terceiro  Reich  para  alcançar  esses  objetivos  é  bastante  complexo,  e  vai  além do escopo dessa pesquisa.   Entretanto, para os objetivos desse estudo é bastante  emblemático o estabelecimento da Concordata entre o Partido Nazista e o Vaticano, que  será apresentado sumariamente.  

Conforme  visto,  após  o  incêndio  do  Parlamento,  em  27  de  fevereiro  de  1933,  Hitler conseguira convencer o presidente Hindenburg emitir o Decreto de Emergência,  que, para  todos os  fins práticos, eliminava o estado de direito.  Apesar disso, o partido  nazista  ainda  não  conseguira a  maioria  no  parlamento.  Assim,  Hitler  decidiu  dar  um  passo  adiante  e  propor ao  parlamento  a Lei  de  Concessão  de  Plenos  Poderes,  ou  Lei  Habilitante (Ermächtigungsgesetz),  que  atribuía  a  ele  plenos  poderes  ditatoriais.  Para  sua aprovação, entretanto, seria necessária a aprovação de dois terços do parlamento, e  o  partido  de  Hitler  junto  com seu  coligado,  o  Partido  Popular  Nacional  Alemão,  formavam apenas 52%.  

Até então, não havia motivos aparentes para Hitler obter o apoio do Partido do  Centro,  católico,  que,  até  essa  ocasião,  havia  se mantido  firme, junto  com  a  hierarquia  católica,  contra  os  avanços  do  partido  nazista.  Considerando  que  o  Partido  do  Centro  representava uma enorme parcela da população, Hitler não  teria interesse político em  confrontá-los. Ao contrário, o mais interessante para ele seria, de algum modo, obter seu  apoio.  Os  relatos  da  sequência  de  eventos  que  levaram  à  obtenção  desse  apoio  são  controversos  e  seguem  sendo  objeto  de  estudo.  (LEWY,  2009,  p.  loc.  982) Mas  de  concreto é possível afirmar que foi muito providencial para os fins políticos de Hitler, a  atuação  do  então  Secretario  de  Estado  do  Vaticano,  Eugênio  Pacelli.  (CORNWELL,  p.  150) 

Há tempos Pacelli buscava firmar uma concordata com a chancelaria alemã para  a obtenção de garantias para a atuação da Igreja Católica na Alemanha. Uma negociação  infrutífera havia sido  tentada com o chanceler Brüning, deixando um considerável mal  estar entre o Vaticano e a chancelaria alemã.  

O próximo chanceler, Von Papen, no entanto,  tinha uma posição diferente da de  Brüning. Ele próprio era do Partido do Centro, Católico, e estava ciente das crescentes 

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manifestações antinazistas do clero católico. Porém, como homem de direita, era claro  para  ele  que  uma  coalizão  com  o  Partido  Nazista  seria  sua  melhor  chance  de  sobrevivência. Alguns autores apontam que talvez seu objetivo velado teria sido exercer  um  certo  controle  sobre  Hitler.  Independentemente  de  seus  reais  objetivos,  não  foi  difícil retomar a negociação da Concordata, muito embora os interesses de Pacelli e de  Hitler se alinhassem, mas com objetivos diferentes. (CORNWELL, p. 150) 

Com as negociações para a Concordata ainda em andamento, Pacelli convocou os  bispos alemães para a Conferência em Fulda, de 30 de maio a 1 de junho de 1933. Uma  das decisões dos bispos  foi a dissolução do Partido do Centro que, conforme afirmou o  próprio  Von  Papen,  visava  pavimentar  o  caminho  para  a  Concordata.  As  ações  antissemitas  do  governo  não  foram mencionadas.  Quanto  ao  suporte  aos  objetivos  de  Hitler, a declaração foi: 

“Nós,  bispos  alemães  estamos longe  de  subestimar  ou mesmo impedir  

esse despertar nacional. Nossa nação germânica, após anos de servidão,  

desrespeito  por  nosso  direito  nacional,  além  de  vergonhosa  

interferência, deve receber novamente um lugar de liberdade e honra na  família das nações, digno de seu tamanho numérico, habilidade cultural  e desempenho.”  (LEWY, 2009, p. loc. 1408) Tradução do autor. 

A declaração acima  foi  tornada pública e  teve grande  repercussão na imprensa.  Conforme pondera Cymet, os leitores não “achariam difícil abraçar de coração o mundo  do  nacional-socialismo”. (CYMET,  2010,  p.  59) Ou,  nas  palavras  de  Johnson,  “o  efeito  líquido  foi  ajudar  os  nazistas  e  inclinar  os  eleitores  católicos  a  apoiá-los”. (JOHNSON,  2001, p. 537) 

De quem  teria sido a iniciativa de  firmar um acordo, de Hitler ou da Santa Sé, é  assunto controverso. Porém, na análise de Lewy e Evans, a sucessão de eventos indica  que a atuação do presidente do Partido do Centro, o prelado jesuíta Monsenhor Ludwig  Kaas,  foi  fundamental.  (2009,  p.  loc.  1009) (EVANS,  2010,  p.  137) Pacelli  já  havia  responsabilizado  Kaas    pelo  fracasso  da  tentativa  de  estabelecer  a  Concordata  com  Brüning. Sua proximidade ao chanceler Von Papen, assim como os  frequentes contatos  com o Vaticano, indicam que ele foi um personagem chave na articulação da Concordata.  (CONWAY, 1968, p. 18) 

Ademais, em eu diário consta a seguinte afirmação:

80 

No  interesse  da  nação,  bem  como  do  ponto  de  vista  do  catolicismo  

alemão,  eu  ficaria  muito  feliz  se  a  diretriz  escolhida  por  estas  

declarações  continuem  a  ser  seguidas.  Nada  poderia  contribuir  mais  

para  a  consolidação  interna  do  regime  autoritário.  Por  isso,  e  por  

convicção pessoal, escolhi também uma atitude de cooperação positiva.  

Seria  uma  fonte  de  satisfação sincera  para mim  se  eu  pudesse  prestar  

alguns bons serviços para o alívio das tensões, em particular na área das  

políticas culturais e religiosas. Estas tensões têm existido por um longo  

tempo  e,  provavelmente,  poderiam  ser  consideradas  finalmente  eliminadas  apenas  quando  um  acordo  for  alcançado  com  base  em  

disposições  incontestáveis.  (LEWY,  2009, p.  loc.  1036) Tradução  do  

autor. 

Quaisquer  que  tenham  sido  as  articulações,  o  fato  é  que  Pacelli  negociou  com  Hitler o  apoio  do  Partido  do  Centro  Católico,  com  uma  representação  de  13,9%.  Com  esses  votos,  e  mais  os  dos  parlamentares  indecisos,  pressionados  pela  presença  ostensiva  da  SA  no  Parlamento,  Hitler  venceu  as  eleições  de  5  de  março,  obtendo  maioria  absoluta  no  parlamento.  Em  23  de  março  foi  aprovada  a  Lei  Habilitante,  na  prática instaurando  o  regime  ditatorial,  com  a  concentração  de  todo  o  poder  em  suas  mãos. Em  troca, Hitler  assinou  a Concordata com  o  Vaticano em 20  de julho  de  1933. (CONWAY, 1968, p. 17) (Figura 10)  

Figura 10. Assinatura da Concordata entre o Vaticano e o Partido Nazista. Da esquerda  para direita: Monsenhor Ludwig Kaas, Vice-chanceler Von Papen, subsecretário Giuseppe  Pizzardo, Secretário de Estado Eugenio Pacelli, substituto Alfredo Ottaviani (futuro Cardeal),  Ministro do Interior Rudolf Hermann Buttman, substituto Giovanni Montini (futuro Papa Paulo  VI). Fonte: (SPIEGEL, 2013, fig. 1)38 

                                                        

38 Disponível  em  http://www.spiegel.de/einestages/80-jahre-reichskonkordat-pakt-zwischen-vatikan und-ns-regierung-a-951201.html. Acessado em janeiro de 2016.




13<<< >>> ÍNDICE     

2.5 Grupos religiosos menores
Diferente dos dois grupos majoritários mencionados até aqui nesse estudo, os
principais grupos religiosos menores não estavam na Alemanha há mais do que uma geração, e ainda trabalhavam em negociações para estabelecer seus direitos legais e atrair mais membros. Nesse processo tiveram que lidar com um partido não somente novo historicamente, mas com uma visão e abordagem também nova. Uma abordagem que buscava tornar cada cidadão não apenas um apoiador, mas um defensor incondicional de seus ideais. Embora isso competisse também com a ideologia do grupo católico e do grupo protestante, a enorme representação numérica desses grupos possibilitou que algum tipo de comprometimento fosse buscado, almejando vantagens dos dois lados. Os grupos menores, porém, estavam em um contexto totalmente diferente, a começar pela irrelevância numérica. Mesmo somando todos os membros, estes mal representavam 1% da população, contra bem mais de 90% do grupo dos católicos e protestantes somados. Tampouco tinham eles uma história que os ligasse fortemente à cultura alemã. Ao contrário, muitos tinham fortes conexões com seus países de origem, sendo vistos como “seitas estrangeiras”, e não podiam contar com o apoio da população alemã. Além disso, guardavam entre si diferenças muito mais profundas do que as existentes entre as diversas igrejas protestantes, tornando impossível quaisquer movimentos em sintonia. Conforme identifica o bispo Johann Neuhäusler (apud King), os nazistas tinham “razões oficiais” para investigar as seitas, a saber (KING, 1982, p. 215): • Seus membros têm suas preocupações próprias, indiferentes às questões do volk39 e estado; 39 No período nazista, o termo volk (povo) era usado em um sentido metafórico, referindo-se ao conjunto de interesses e cultura da população em geral. 84 • Eles têm contato com comunistas e marxistas; • Eles têm contato com a maçonaria , judeus e grupos internacionais; • Eles se recusam a fazer o juramento ou saudação nazistas; • Eles se abstêm do serviço militar; • Eles se recusam a trabalhar em organizações do governo; • Eles se recusam a participar em vários tipos de indústria; • Eles praticam a cura pela fé; • Eles exploram e enganam o volk germânico; • Eles se abstêm de apoiar as teorias racistas no nazismo. Conforme já mencionado, King indica que esse contexto levava esses grupos menores a adotarem uma de três possíveis estratégias de sobrevivência: (1) tentar ganhar o favor das autoridades através da amizade com pessoas influentes, e tentar alguma negociação, (2) tentar prosseguir com as atividades às ocultas ou (3) resistir a todo custo. (KING, 1982, p. 25) Este estudo analisará as estratégias adotadas por três desses grupos, de características comparáveis ao grupo das Testemunhas de Jeová.
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2.5.1 A Igreja de Cristo, Cientista
Um dos grupos menores banidos pelo regime foi a Igreja de Cristo, Cientista,
também conhecida como Igreja Ciência Cristã. Numericamente o grupo era muito pequeno, chegando talvez a poucos milhares [um dos preceitos do grupo é não divulgar oficialmente o número de membros (EDDY, 1936, p. 40)]. O grupo foi fundado em 1879 por Mary Baker Eddy, em Boston, Massachusetts, EUA, e sua crença mais notável é a negação da realidade do mal, isto é, o “mal é uma ilusão” (EDDY, 1879, p. 480). Como consequência, embora não sejam formalmente proibidos de adotar tratamentos médicos, advogam a cura através de orações, uma vez que as doenças teriam, em última análise, causas mentais. Sua atitude para com outras religiões não é antagônica, e não exercem um proselitismo ostensivo. “Um Cientista Cristão genuíno ama protestantes e católicos... ama a todos os que amam a Deus. Ama a seus inimigos”. (EDDY, 1913, p. 4) 85 Além disso, em sua ideologia, os governos devem ser apoiados, uma vez que entendem serem ordenados por Deus. Não há requisitos para não servirem nas forças armadas, e a decisão de participarem em guerras é atribuída à decisão pessoal de cada membro. Assim, eles não fariam objeção à saudação a Hitler, servir o exército ou votar. “Em 1933 parecia à maioria dos Cientistas Cristãos, assim como a vários outros cidadãos alemães, que os nazistas chegaram legalmente ao poder e representavam um regime democrático que deveria ser, por uma questão de dever, obedecido”. (KING, 1982, p. 29) Diante dessa postura, seria difícil antecipar quaisquer objeções por parte do regime nazista. Porém, assim como para os demais grupos, ficaria demonstrado que uma postura de boas-vindas ao Führer não seria suficiente para garantir a sobrevivência. Alguns Cientistas Cristãos foram presos já em 1933, na Turíngia, a sua literatura proscrita em algumas ocasiões posteriores, exigindo a intervenção da Igreja de Boston, que encontrou maneiras de fazer com que o banimento fosse abrandado. Entretanto, suspeitas levantadas pela imprensa nazista e pela SD40 de ‘atividades suspeitas’ resultaram em que os membros do partido foram proibidos de se associarem com o grupo e em 1941 este foi proscrito. (CONWAY, 1968, p. 200) Segundo nota publicada no jornal Time, de Nova York, a sede da igreja explicou a proscrição nos seguintes termos: ‘1. Os nazistas não consideram patriótico que um alemão esteja filiado a uma organização americana. 2. Os Cientistas Cristãos nos EUA declararam em sua convenção anual que forças malignas nas ditaturas existem apenas como um estado subjetivo de pensamentos errôneos, assim não possuem poder, permanência ou realidade. 3. Os nazistas sempre denunciaram a filosofia de Mary Baker Eddy como liberalista e não-germânica, aliada a um forte pacifismo.’ (TIME, 1941, p. 42) Tradução do autor Apesar de proscrito, o grupo não foi alvo de intensa perseguição. Não havia, de fato, por parte do grupo, manifestações de oposição ideológica que justificassem ações de coibição mais intensas. Ao contrário, as demonstrações de disposição em fazer concessões por parte do grupo foram suficientes para convencer as autoridades nazistas 40 SD. Sicherheitsdienst (Serviço de Segurança). Braço de inteligência da SS com membros jovens de formação de alto nível, que se converteram em guardiões da ideologia nazista. (MAZOWER, 2013, p. 287) 86 de que não havia uma oposição ideológica que exigisse mais do que uma simples supervisão e, vez por outra, alguns “tiros para o alto” apenas. (KING, 1982, p. 53)

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2.5.2 A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias
A Igreja de Jesus Cristo do Santos do Últimos dias, cujos membros são também
conhecidos como Mórmons ou LDS (Latter-Day Sancts)41 foi fundada nos Estados Unidos da América por Joseph Smith (1805-1844), que afirmou ter sido guiado por um anjo, Moroni, ao local onde estavam escondidas placas de ouro com a inscrição do Livro de Mórmon. Mórmon é o nome do profeta que, segundo a crença do grupo, compilou grande parte do Livro, que utilizam em adição à Bíblia. O Livro de Mórmon trata, entre outras coisas, do relato sobre o estabelecimento de famílias israelitas que migraram por volta do ano 600 aC do Oriente Médio para a América, e da missão que Jesus teria realizado entre os descendentes dessas famílias, após sua ressurreição, no início do primeiro século. A Igreja tem uma estrutura hierárquica encabeçada pelo Primeiro Presidente, considerado profeta, e um grupo de 12 líderes associados, chamados de Apóstolos42, baseados em Utah, EUA. Por volta de 1933, entre 15.000 e 16.500 pessoas na Alemanha professavam pertencer à Igreja Mórmon. (DIXON, 1972, p. 71) e (KING, 1982, p. 231) Apesar da forte conexão com os Estados Unidos, e por serem um grupo bastante centrado em atividades próprias, o grupo não aparece citado pela SS ou Gestapo como potencialmente subversivos, ou, pelo menos, nem próximo ao grau de risco atribuído às Testemunhas de Jeová, conforme veremos. Grande parte da tolerância com que foram tratados pode ser atribuída às estratégias adotadas pela liderança, muito mais complexa e experiente, por exemplo, que a liderança da Igreja de Cristo, Cientista. 41 A preferência pelos nomes é ligeiramente diferente entre as diversas variações dentro do grupo. Todas, porém, adotam os preceitos básicos do mormonismo, e serão consideradas como um único grupo para os fins dessa pesquisa, que se referirá aos membros como “Mórmons”. 42 Grupo de dirigentes, cuja autoridade é inferior apenas à do Primeiro Presidente. (ARRINGTON, 1986, p. 110) 87 É verdade que o período inicial de sua história na Alemanha, que começou em 1840, não foi isento de dificuldades. Os Mórmons enfrentaram oposição para se estabelecerem, principalmente por parte das igrejas organizadas, que encaravam com desconfiança suas crenças, aos seus olhos, heréticas43, e ao encorajamento que os membros recebiam de migrarem para Utah. A Primeira Guerra Mundial foi usada pela Igreja Mórmon para demonstrar a lealdade de seus membros à Alemanha, e as ações tomadas então estabeleceram tanto uma base de relacionamento com o governo alemão durante a República de Weimar, como um modelo do que os Mórmons fariam durante a Segunda Guerra Mundial. O início desse assunto ocorreu na conferência anual da Igreja, em agosto de 1917, em Utah, EUA. Na ocasião, o governo dos Estados Unidos declarara oficialmente o estado de guerra contra o governo imperial alemão. A posição da Igreja Mórmon quanto à participação ou não de seus membros na guerra foi expressa pelo então presidente Joseph F. Smith, que, em seu discurso, afirmou: Eu quero dizer aos Santos dos Últimos Dias que podem se alistar e cujos serviços o país pode exigir que, quando eles se tornam soldados do Estado e da nação, que eles não esqueçam que eles também são soldados da Cruz, que eles são ministros da vida, não da morte, e quando saem, o fazem no espírito de defender as liberdades da humanidade, em vez de com o propósito de destruir o inimigo .... Que os soldados de Utah sejam e permaneçam homens de honra. E, quando forem chamados, que obedeçam a chamada, e cumpram corajosamente o dever, os perigos, ou o trabalho que seja exigido deles, ou que possam ser treinados para fazer; mas façam-no com os olhos fixos na realização do bem que é destinado a ser realizado, e não no desejo sedento de sangue de matar e destruir. (ROBERTS, 1930, p. loc. 72768) Essa postura serviu para justificar o envolvimento dos membros da igreja em um combate cujo resultado poderia ser o sacrifício da vida dele mesmo, ou de seu oponente. Em outras palavras, o embate era uma decisão do governo – o soldado estava tão somente cumprindo seu dever cívico, e, portanto, para com Deus, que havia posto as 43 Como por exemplo, de que Deus é constituído de carne e osso (SMITH, 1835, p. 130:22) e de que os humanos poderão se tornar como Deus. (THE CHURCH OF JESUS CHRIST OF THE SAINTS OF LATTER- DAY, p. 1) 88 autoridades seculares em sua posição, conforme sua leitura de Romanos 13:144. De fato, este é um dos preceitos básicos da ideologia Mórmon, conforme uma de suas obras de referência essenciais, A Pérola de Grande Valor, referido frequentemente como o “Artigo 12”: Regras da Fé 1:12 – Cremos na submissão a reis, presidentes, governantes, e magistrados; na obediência, honra, e manutenção da lei. (SMITH, 2015, p. 71) Entretanto, uma das consequências óbvias dessa postura seria a questão: que dizer dos membros da Igreja na Alemanha? Como lidar com a possibilidade de um combate entre membros da Igreja Mórmon alemães contra membros britânicos, ou mesmo americanos? A forma como a liderança da Igreja Mórmon lidou com esta questão foi decisiva na determinação de como se daria o relacionamento com o governo durante a ascensão do Terceiro Reich, a saber: “o problema moral foi resolvido pela distinção que a Igreja fez entre o governo e os cidadãos”. (KING, 1982, p. 59) Como explica o historiador Roberts: Havia uma questão inquietante [diante da decisão do congresso citado acima, n. do autor]: O que devem os Santos dos Últimos Dias na Alemanha fazer? Qual será a sua atitude mental, e sua ação? Esta situação para eles só pode ser deplorada, é claro; mas praticamente, por necessidade inexorável da austera lei alemã, os Santos alemães serão obrigados a entrar na guerra ao lado de seu país. E apesar do quão lamentável isso seja, os Santos dos Últimos Dias acreditam "na submissão a reis, presidentes, governantes e magistrados, na obediência, honra e manutenção da lei." Isso significa, é claro, defender e obedecer a lei e defender o governo nos respectivos países em que os Santos dos Últimos Dias vivem; e se as condições surgem, como no presente caso em apreço, em que um país vai mal, e um governo se torna perverso, tais condições só podem ser deploradas e suportadas ... até que haja um reajustamento dos assuntos, e que fiquem mais em conformidade com o direito e a justiça. Tudo isto apenas demonstra a necessidade do proferimento de orações fervorosas para que o Reino de Deus venha, e sua regra de justiça e verdade seja estabelecida, e que essas perplexidades e deveres conflitantes não surjam para atormentar as pessoas de qualquer país. (ROBERTS, 1930, p. loc. 72849) Tradução e grifo do autor. 44 Romanos 13:1 – Todos devem sujeitar-se às autoridades superiores; porquanto, não, há autoridade que não venha de Deus; e as que existem foram ordenadas por Ele. Versão Rei Jaime em português. 89 Assim, em essência, cada membro da Igreja lutaria igualmente pelo seu próprio país, delegando a responsabilidade das consequências aos respectivos governantes. Porém, ainda neste âmbito, Dixon levanta outra possível questão ideológica. Como os membros da Igreja Mórmon lidariam com um eventual conflito entre a autoridade divina e a autoridade humana, ou seja, como ‘dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus’45? Dixon responde citando a explicação deste princípio feita por James E. Talmage, membro do Quórum dos Doze Apóstolos da Igreja Mórmon de 1911 a 1933: Enquanto se aguarda a soberania da Providência em favor da liberdade de religião, é dever dos santos para submeter-se às leis de seu país. No entanto, eles devem usar todo método adequado, como cidadãos ou súditos de seus vários governos, de assegurar para si e para todos os homens a benção de liberdade no serviço religioso. Não é exigido deles sofrer sem protestar a imposição ilegal de perseguição, ou através da operação de leis injustas; mas seus protestos devem ser oferecidos de forma legal e apropriada. Os santos têm demonstrado na prática a sua aceitação da doutrina de que é melhor sofrer o mal do que fazer o que é errado pela oposição puramente humana à autoridade injusta. E se por assim submeterem-se às leis do país, caso essas leis sejam injusta e subversivas à liberdado dos homens, e as pessoas sejam impedidas de fazer o trabalho para o qual Deus as nomeou, eles não devem ser responsabilizados pela falha em obedecer uma lei maior. (TALMAGE, 1960, p. 423) Tradução e grifo do autor. Ou seja, em caso de conflito de soberanias, uma vez que um ‘protesto legal’ tenha sido feito sem sucesso, os membros estaria isentos de responsabilidades. Assim, conforme Dixon conclui, “muitos Mórmons na Alemanha nazista sem dúvida usaram esse raciocínio para evitar o problema de se opor a um regime imoral, e para desvincular-se da vergonha coletiva e culpa colocada sobre a população alemã por conta do regime nazista”. (DIXON, 1972, p. 73) A orientação atual fornecida pela Igreja a seus membros permanece basicamente a mesma, conforme corrobora o site oficial da Igreja Mórmon: Nossa fé em Jesus Cristo faz com que sejamos cidadãos responsáveis e atuantes. Cremos que devemos obedecer às leis do país onde moramos (Regras de Fé 1:12). Os mórmons são aconselhados a ser bons cidadãos, a participar no governo civil e do processo político e a servir a 45 Mateus 22:21 90 comunidade como cidadãos atuantes e conscientes. (Site IGREJA DE JESUS CRISTO DOS SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS, p. 1) Estando, portanto, a questão da participação nas atividades militares eliminada quanto a ser um obstáculo ao relacionamento com o partido nazista, outras ações relacionadas à orientação acima (de serem ‘cidadãos atuantes e conscientes’) ajudaram a pavimentar um relacionamento amistoso, inclusive com outros segmentos da sociedade alemã, como a imprensa, por exemplo. Vários jornalistas foram convidados a visitar a sede da igreja em Utah, e reportaram suas boas impressões. A similaridade entre várias práticas da Igreja Mórmon, como a abstinência ao álcool e ao tabaco, similar ao do Führer, foi destacada. (NELSON, 2015, p. 121) Varias comparações foram feitas inclusive destacando as similaridades doutrinais entre o nazismo e o mormonismo. (CARTER, 2010, p. 76) Como exemplos de demonstração de amistosidade nas relações, a suástica aparecia em alguns eventos da Igreja Mórmon, como em 8 de julho de 1937, numa reunião do Presidente Heber J. Grant com cerca de 870 membros da igreja em Frankfurt, e em maio de 1939, numa das dependências da prefeitura de Frankfurt, usada para uma conferência do presidente da Missão do Leste da Alemanha, M. Douglas Wood, com os missionários. (Figuras 11 e 12) Figura 11. Reunião por ocasião da visita do presidente Herber J. Grant, que está no centro da mesa. (HOLZAPFEL; BOHN, 2003, p. 14) 91 Figura 12. Bandeiras americana e nazista decoram o local da reunião da Igreja Mórmon em uma dependência da prefeitura de Frankfurt. (MINERT, 2011, p. 1) Os Mórmons deram também um apoio significativo a vários programas sociais ao governo nas décadas de 20 e 30, relevantes durante o período de dificuldades econômicas que afligiam a população alemã na época. Como resultado, até mesmo os comentaristas católicos e protestantes passaram a ser mais tolerantes com os eles, bem diferente da maneira a que se referiam aos demais grupos religiosos menores. Por todas essas razões, no período em que o nazismo chegava ao poder, os Mórmons desfrutavam de uma considerável medida de simpatia por parte do partido nazista e dos principais setores da sociedade. (KING, 1982, p. 63) Isso não significa que a Igreja Mórmon tenha passado incólume pelo período nazista. A forte ligação com os Estados Unidos, as muitas referências a Sião e a Israel na literatura mórmon (CARTER, 2010, p. 63) e a presença de missionários americanos não eram aspectos atraentes para os nazistas. Assim, algumas reuniões foram assistidas por membros da Gestapo e algumas das atividades dos jovens, similares ao escotismo, foram suspensas algumas vezes. Algumas propriedades foram confiscadas. Não obstante, essas ações em geral foram breves. (KING, 1982, p. 65) 92 Com relação à crescente perseguição e violência contra os judeus, apesar da literatura Mórmon referir-se a eles como “raça escolhida” (MCCONKIE, 1966, p. 283), a maior parte dos Mórmons simplesmente manteve-se calada, pois, para eles o governo era legalmente constituído e devia ser obedecido. Não deixou de ser, é verdade, como apresenta Dixon, “um amargo dilema: se permanecessem em silêncio e cuidassem de seus próprios negócios, estariam em razoável segurança. Caso confrontassem abertamente os nazistas, fracassariam.” (DIXON, 1972, p. 75) Conforme demonstrado pela história, a maioria sentiu que poderia fazer mais a longo prazo mantendo-se longe do confronto e permanecendo vivo. (KING, 1982, p. 75) Essa posição, entretanto, não foi unânime. Pelo menos um caso ganhou proporções importantes e exigiu ação da Igreja Mórmon. Envolveu um jovem de dezessete anos, chamado Helmuth Hübener que pertencia à igreja46 St. George, em Hamburgo e que, como muitos outros jovens, inicialmente recebeu bem as propostas do partido nazista, e chegou a pertencer à juventude hitlerista quando seu grupo de escotismo foi encerrado pelos nazistas. (CARTER, 2010, p. 61) (Figura 13) Logo, porém, as manifestações de racismo, como a Noite dos Cristais 47, por exemplo, e a atitude inquisidora e violenta de membros da juventude hitlerista, passaram a incomodar a ele e seus dois amigos mais próximos, Rudolf Wobbe e Karl- Heinz Schnibbe. (KING, 1982, p. 73) Entretanto, e fato que levou ao extremo seu descontentamento e o induziu à ação foi a reação da igreja a que pertenciam. (NELSON, 2015, p. 292) A igreja era presidida por Arnold Zollner, cuja simpatia pelos nazistas era conhecida. Por exemplo, por sua ordem, foi colocada uma placa na porta do edifício de reuniões da igreja com os dizeres: “Juden ist der entritt verbotten!” (Judeus não são permitidos aqui!). Era prática sua também trazer para as reuniões na igreja seu rádio, sempre que houvesse algum discurso de Hitler ou Goebbels, trancando a porta para que ninguém saísse. (KEELE; TOBLER, 1980, p. 21) 46 A rigor, ao “ramo”. Um “ramo” é um grupo menor que uma “ala”, composto por pessoas de uma certa localidade geográfica. Uma “estaca” é composta por várias alas. 93 Figura 13: A partir da esquerda, Rudi Wobbe, Helmuth Hübener e Karl-Heinz Schnibbe. Fonte: BCC Journal.48 Além desses fatos, Hübener teve acesso a um rádio de ondas curtas através do qual ele e seus amigos ouviam as emissões da rádio inglesa BBC, onde obtinham informações não disponíveis a outros cidadãos, informações essas muito divergentes das fornecidas pelo partido nazista. Assim, Hübener e seus amigos passaram a imprimir, com equipamento da igreja, mas em conhecimento dos demais membros ou da liderança, folhetos antinazistas e distribui-los de porta em porta. Não demorou até que o assunto chegasse ao conhecimento da Gestapo. Os jovens foram presos e Hübener assumiu a responsabilidade, insistindo que os demais agiram sob sua influência, de modo que os demais receberam sentenças de prisão, que variaram de 4 a 10 anos, e Hübener foi condenado à morte por traição. A Gestapo interrogou os líderes da igreja exaustivamente, mas concluiu que os jovens agiram por iniciativa própria. Portanto exigiu que a igreja excomungasse Hübener. A igreja concordou e o excomungou em 15 de fevereiro de 1942, dez dias após 47 Noite dos Cristais, 9 de novembro de 1938. 48 Disponível em http://bycommonconsent.com/2014/10/27/helmuth-hubener-on-the-day-of-his- execution/. Acessado em janeiro de 2016 94 sua prisão. Hübener foi decapitado em 27 de outubro de 1942. Depois da guerra, seu caso foi revisto pela Primeira Presidência, em Salt Lake City, sede da igreja, e a excomunhão foi cancelada em 24 de janeiro de 1948. (KEELE; TOBLER, 1980, p. 23) A reação da igreja à execução de Hübener é descrita no Centro de Estudos da Religião da BYU por Roger Minert: “A maioria sentiu tristeza pelos jovens quando suas prisões e punições foram anunciadas, mas muito desapontados que tais atos aparentemente tolos e autodestrutivos pudessem ter sido cometidos por LDS, que haviam sido ensinados a obedecer as leis e prestar lealdade ao governo.” (2011, pp. 127–38) Como mencionado, porém, essa foi uma exceção ao comportamento geral dos membros da Igreja Mórmon. A maior parte dos danos sofridos por eles foram os mesmos que os demais cidadãos, devido aos bombardeios, escassez de alimentos e as restrições comuns do período. Em larga medida os mórmons e os nazistas conviveram pacificamente, e, dos grupos considerados aqui, foram os que receberam o melhor tratamento por parte dos nazistas. (NELSON, 2015, p. 136)(CARTER, 2010, p. 78) Em conclusão, baseado na consideração da literatura tanto da Igreja Mórmon quanto de historiadores, muito similarmente aos demais grupos considerados até aqui, o que é possível concluir é que a manutenção da permanência do grupo foi sua principal preocupação, e sua ideologia foi adaptada para justificar a não confrontação. Os LDS germânicos não desejaram uma confrontação com seu governo nacional, e ficaram satisfeitos por seguir o conselho do Primeiro Presidente, de ‘aguardar com paciência’ e zelar pela sobrevivência da Igreja. (KEELE; TOBLER, 1980, p. 27)
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2.5.3 A Igreja Adventista
A origem dos vários grupos genericamente chamados de Adventistas remontam a
William Miller, um ministro leigo Batista, ‘de modos honestos e grande erudição’, que em 1833 iniciou a divulgação de sua doutrina segundo a qual o advento, isto é, a volta de 95 Cristo, ocorreria finalmente em 22 de outubro de 1844. 49 (M’CLINTOCK; STRONG, 1894, p. 271) Assim como esta, outras datas sucessivamente propostas não trouxeram o advento o que resultou em vários cismas no grupo millerita, com diferentes releituras da previsão, e um desses grupos consolidou-se no núcleo do que, na década de 1860, viria a ser a Igreja Adventista do Sétimo Dia. A ideia central inicial do grupo foi proposta Hiram Edson, também millerita. (BUTLER et al., 2005, p. 8237) A doutrina, chamada de “juízo investigativo”, propunha que 1844 havia assinalado não a volta de Cristo, mas sua entrada do tempo (no céu) para iniciar o trabalho de identificação dos justos. Crença Fundamental 23: O juízo investigativo revela aos seres celestiais quem dentre os mortos dorme em Cristo, sendo, portanto, nele, considerado digno de ter parte na primeira ressurreição. Também torna manifesto quem, dentre os vivos, permanece em Cristo, guardando os mandamentos de Deus e a fé de Jesus, estando, portanto, nele, preparado para a trasladação ao Seu reino eterno. Este julgamento vindica a justiça de Deus em salvar os que creem em Jesus. Declara que os que permaneceram leais a Deus receberão o reino. A terminação do ministério de Cristo assinalará o fim do tempo da graça para os seres humanos, antes do Segundo Advento. (DIA, 2003, p. 407) Nesse pequeno grupo inicial ganhou notoriedade uma jovem chamada Ellen White, que afirmava receber visões. Junto com seu marido James White, que atuava como empreendedor das ideias de Ellen, e um grupo de apoiadores, passaram a estabelecer um conjunto de doutrinas, em grande medida similares aos demais grupos que surgiam nessa época: retorno à leitura literal da Bíblia, abandono dos ritos das religiões históricas, milenarismo, expectativa do advento, revalorização do Velho Testamento. Nos anos de 1860 o grupo já tinha uma estrutura formal mais definida, com cerca de 125 igrejas e 3500 membros, com uma Conferência Geral como órgão diretor, presidida por James White. Com sua morte, em 1881, Ellen White assumiu um papel mais assertivo, tornando-se a personalidade mais influente do grupo dos Adventistas do Sétimo Dia, muito embora seus escritos não sejam tomados como substitutos da Bíblia. (IGREJA DE JESUS CRISTO DOS SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS, p. 304) 49 Em essência, Miller baseava-se na profecia de Daniel 18:4, que diz: “E ele me disse: Até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será purificado.” O período era entendido como sendo de 2300 anos, começando com o retorno de Esdras de Babilônia para Jerusalém, entendida como ocorrendo em 457 aC, para restabelecer a comunidade judaica, e terminando em 1844. 96 A autoridade de Ellen White é aceita em graus diferentes, entre os vários grupos de Adventistas. De fato, o sectarismo é uma das caraterísticas marcantes do grupo como um todo, sendo difícil precisar na literatura o exato número de grupos que o compõe. (BUTLER et al., 2005, p. 8237) Para os fins deste estudo, porém é de maior relevância o grupo de Adventistas do Sétimo Dia, inicialmente, e dos Adventistas do Sétimo Dia Movimento de Reforma, dissidentes do primeiro, ambos com atitudes e tratamentos bastante diferentes durante o período do regime nazista. Presentes na Alemanha desde antes da Primeira Guerra Mundial, os Adventistas do Sétimo Dia, embora organizados a partir da Conferência Geral, sediada nos EUA, tinham um grau de autonomia maior que os Mórmons e Cientistas Cristãos. A ocorrência da Primeira Guerra colocou-os, assim como aos demais grupos, diante da questão de participar ou não das forças armadas. A orientação da igreja adventista sempre havia sido a aceitação de atividades não ligadas a combate. A Conferência Geral de 1867 havia estabelecido que “o uso de armas ou a participação na guerra é uma violação direta dos ensinamentos de nosso Salvador e do espírito e da letra da lei de Deus”. (MORGAN, 2003, p. 1) Algumas observações feitas pelos fundadores James e Ellen White, porém, deram margem para alguma flexibilidade nessa orientação. Por ocasião da guerra civil americana, em 1862, James White havia escrito um editorial chamado “The Nation” no Advent Review and Sabbath Herald tratando do tema participação ou não no combate, e nele afirma que “caso convocado, ele deveria aceitar, deixando que o governo assuma a responsabilidade perante Deus”. (MORGAN, 2003, p. 1) Similarmente, Ellen White, quando de sua visita à Suíça em setembro de 1886 havia recebido a visita de três membros da igreja convocados para o serviço militar, e afirmou estar “feliz que esses homens receberam menções de honra pela fidelidade nos deveres. ... Eles não foram por escolha, mas porque as leis de sua nação assim o exigiu”. (WHITE, 1958, p. 335) Apesar da resolução original da Conferência Geral, esses comentários tiveram um efeito importante nos Adventistas na Europa. Um dos pioneiros em organizar o grupo na Alemanha era Ludwig R. Conradi, que baseou-se neles para basicamente repudiar o não envolvimento na guerra. (SCHRODER, 2002) Conforme Morgan, “sob sua liderança, a igreja alemã tomou a posição de que, durante a guerra, os Adventistas convocados não 97 apenas portariam armas, como também não faria caso da observância do sábado. Conradi insistiu apenas que o sábado fosse guardado pelos pessoal militar adventista durante o período de paz.” (MORGAN, 2003, p. 1) Essa diferença de posição, novamente, resultou na cisão do grupo. Um Protocolo da Negociação com o Movimento de Oposição, de 21 a 23 de julho de 1920, em Friedensau, manteve a decisão do grupo majoritário (98%) de que “em tudo o que temos dito, temos mostrado que a Bíblia ensina, primeiramente, que tomar parte na guerra não é uma violação do sexto mandamento50, e que realizar o serviço de guerra no sábado não é uma violação do quarto mandamento51”. (ADVENTISTS, 1920, p. 9) Assim, os 2% dissidentes que se mantiveram a favor da recusa do serviço militar e insistiram na observância do sábado foram desassociados do grupo original e constituíram a Igreja Adventista do Sétimo Dia Movimento de Reforma. (MOVEMENT, 2016, p. 1) O grupo majoritário, em sua literatura e contato com o governo, buscou sempre ressaltar o fato de que os grupos não estavam mais ligados. A posição dos dois grupos durante a ascensão do Terceiro Reich e os anos de guerra, assim como o tratamento que receberam do governo nazista foram bastante diferentes. A maior parte dos Adventistas do Sétimo Dia mostrou-se favorável às propostas de Hitler, e não fez objeção à saudação nazista ou à suástica. Em Friedensau, por exemplo, cidade com cuja população era na grande maioria Adventista, o partido nazista recebeu 99,9% dos votos. (SICHER, 1977, p. 14) De fato, os que foram reticentes foram encorajados a concordarem prontamente com essas ações, pois a demora poderia causar dano ao ‘bom nome da igreja’. Numa carta de Adolf Minck, presidente da Divisão 50 Êxodo 20:13 – Não matarás. Tradução João Ferreira de Almeida 51 Êxodo 20:8-11 – Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra, mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo que neles há e ao sétimo dia descansou; portanto, abençoou o SENHOR o dia do sábado e o santificou. Tradução João Ferreira de Almeida 98 da Europa Central da Igreja Adventista, de 4 de abril de 1940, aos “Diretores e Ministros da Igreja na Alemanha”, ele diz em parte: "Recentemente, autoridades responsáveis têm chamado à minha atenção o fato de que certos membros de nossa igreja que são designados para trabalhar nas operações militares e operações essenciais para a vida se recusaram a trabalhar aos sábados. Estes casos foram isolados e, após consulta com os membros em questão por seus ministros, foram explicados e resolvidos. No entanto, sinto-me obrigado a pedir-lhe mais uma vez que garantam que os membros da igreja sejam instruídos para as obrigações que temos, com base na Sagrada Escritura, no que diz respeito ao nosso povo e pátria, bem como aqueles em posição de autoridade. A aceitação do serviço militar e da guerra, de acordo com a Bíblia, inclui o cumprimento das obrigações que dele decorrem. Peço-lhes para informar os membros da igreja neste assunto que devemos servir a pátria neste tempo de guerra de forma exemplar. (...)Quanto mais fiel e conscienciosamente todo adventista estiver fazendo o seu dever no posto atribuído a ele neste tempo de guerra, mais ele pode esperar compreensão e acolhimento para as suas convicções de fé e consciência em tempos de paz.” Não obstante essa e outras ostensivas manifestações de apoio, (BULL; LOCKHART, 2007, pp. 193, 194, 420), em algumas ocasiões foram tomadas ações contra a atuação dos Adventistas do Sétimo Dia, como por exemplo, em 26 de novembro de 1933, quando a Gestapo dissolveu a igreja na Prússia e em Hesse, confiscando algumas propriedades. Em grande parte isso se deu por algumas das doutrinas estarem aparentemente ligadas ao judaísmo, em especial a guarda do sábado, a que se referiam com o termo “Sabá”. Porém, a igreja reagiu imediatamente, promovendo uma “limpeza do espírito do judaísmo”, por exemplo, alterando seus temos para evitar confusão. Assim, o “Sabá” passou a ser referido com o termo alemão “ruhetag” (dia de descanso), as “Escolas Sabatinas”, para “Escolas Bíblicas”, e o termo “Sião” ou outros ligados ao judaísmo deixaram de ser usados. (BARKER, 1981, p. 246) O antissemitismo foi relacionado ao fato de que os semitas (ancestrais dos judeus) deixaram de ser o povo escolhido, que passara a ser os da linhagem de Jafet52 (ancestral dos arianos). (KING, 1982, p. 95) 52 Na história bíblica, um dos três filhos de Noé, junto com Sem e Cã. 99 Alguns desses temas foram explicados numa carta dirigida ao Ministro do Interior, Wilhelm Frick, em Berlin, em 20 de dezembro de 1933. Essa carta também indicava que os Adventistas do Sétimo Dia não desejavam ser confundidos com os Adventistas do Sétimo Dia Movimento da Reforma, a quem denunciaram como antigovernistas e de várias doutrinas desarrazoadas. (SICHER, 1977, p. 15) (LICHTI, 2008, p. 51) Essa denúncia levou o governo nazista a olhar com mais atenção o pequeno grupo reformista. Por essa época, a Gestapo já lidava de modo brutal com as Testemunhas de Jeová, não por sua quantidade de membros, mas por sua inflexibilidade ideológica. O grupo reformista adventista também manteve inflexível sua determinação de não cooperarem com o exército nazista, não abrirem mão de guardar o sábado sob nenhuma circunstância, e não concordarem com a saudação nazista. (LICHTI, 2008, p. 70) O que a Gestapo constatou do grupo reformista os aproximava muito das Testemunhas de Jeová, de modo que o tratamento dispensado foi também muito semelhante. Sua atividade foi banida, e vários chefes de família foram levados aos campos de concentração de Oranienburg, Auschwitz, Sachsenhausen, Muthausen e Neugengamme, onde ‘morriam de doença’, de acordo com a carta usualmente enviada às famílias. Muitas das famílias foram desfeitas, e os filhos encaminhados ao programa de relocação nazista (Lebensborn). Por serem um grupo muito pequeno e sem influência, pouco puderam fazer, a não ser suportar passivamente. Os nomes de muitos dos que foram executados se perderam, mas a Igreja preserva o registro de vários. (KING, 1982, p. 107) Garbe relata que é possível estimar que cerca de 50 Adventistas da Reforma tenham sido enviados aos campos, e que 12 teriam sido executados. (GARBE, 2008, p. 697, nota 346) Dois grupos fundamentados na mesma ideologia, porém com estratégias completamente diferentes de sobrevivência. A estratégia do grupo maior, em última análise, não se diferenciou grandemente dos demais analisados neste estudo. Conforme pondera King, “para o Adventista [do Sétimo Dia], a sobrevivência da Igreja era essencial e ele não faria nada que colocasse a lealdade da Igreja em dúvida. E essa obrigação religiosa de obedecer às autoridades suplantaria qualquer outro dever”. Por outro lado, para o grupo reformista “um comprometimento estava fora de questão. Negar sua visão 100 seria negar a razão de sua existência. A única opção era suportar as consequências”. (KING, 1982, p. 85)
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3. A materialização do conflito ideológico
Diante do exposto, é possível compreender que o desenvolvimento e consumação
do confronto do Partido Nazista com as Testemunhas de Jeová seria inevitável. Uma abordagem histórica detalhada dos acontecimentos não será contemplada nessa pesquisa, por não ser seu objetivo principal. Os fatos históricos estão documentados em português nas publicações da entidade; há relativamente pouca documentação de fontes externas à entidade em português, podendo ser esse um tema de apreciação em futuros trabalhos. Em inglês há trabalhos acadêmicas importantes, que constam na bibliografia, notadamente dos pesquisadores John S. Conway, Cristine Elizabeth King, Detlef Garbe, Hans Hesse e M. James Penton. Ainda assim, é importante destacar aqui alguns dos principais desenvolvimentos para fins de demonstração dos resultados do conflito ideológico apresentado. Alguns conflitos com o governo alemão começaram, de fato, ainda durante a República de Weimar. Sua recusa de participar em atividades de combate durante a Primeira Guerra Mundial já os havia colocado sob suspeita, especialmente à luz do fato de que, conforme demonstrado, outros grupos religiosos participaram dela sem maiores objeções. Além disso, as Testemunhas de Jeová eram bastante assertivas em suas publicações ao apontar os governos e religiões “do mundo” como parte de um sistema manipulado pelo Diabo. De 1924 a 1926 esses conflitos se deram mais no campo legal, com a tentativa de suspensão da distribuição de publicações e algumas prisões. (SOCIETY, 1975, p. 103) Porém a proscrição aumentou progressivamente, e em 1933, com a chegada do Terceiro Reich ao poder, as Testemunhas de Jeová foram o primeiro grupo religioso banido, com as casas dos membros sendo revistadas regularmente pela Gestapo e SS, e prisões sendo realizadas. (GARBE, 2008, p. 100) Algumas ações tomadas pelos dirigentes da filial por essa época para tentar restaurar legalmente o trabalho chegaram a causar diferenças de opiniões no grupo. Para alguns, o presidente da filial na época, Paul Balzereit, que tentava algum alívio por meios diplomáticos, estava sendo muito condescendente com as autoridades nazistas e exigiam uma postura de maior confronto. Outros porém, ainda que mantendo 102 intransigência quanto aos princípios fundamentais de neutralidade, eram da opinião de que não deveriam provocar desnecessariamente o governo ou o clero das outras igrejas. Por exemplo, um importante documento publicado nessa ocasião foi notório nesse efeito. O presidente Rutherford, da sede dos EUA, visitou a Alemanha em 1933 com Nathan Knorr (que o sucederia na presidência dez anos depois) a fim de ver o que poderia ser feito para minimizar os efeitos da proscrição. Junto com o presidente da filial, Paul Balzereit, foi elaborado um documento chamado “Declaração de Fatos” que seria lida e ratificada em um congresso a ser realizado em Berlim, em 25 de junho do mesmo ano. A declaração seria um protesto contra a interferência do governo no trabalho das Testemunhas de Jeová, e um esclarecimento de sua posição, e seria enviada a Hitler e todo seu gabinete. Rutherford retornou aos Estados Unidos antes do congresso. (SOCIETY, 1975, p. 110) O congresso foi realizado, assim como a leitura da Declaração, como planejado. A tradução em inglês da Declaração foi publicada no Anuário das Testemunhas de Jeová de 193453. De modo geral a Declaração expõe a posição ideológica das Testemunhas de Jeová, já apresentada nesse trabalho, como nesses trechos de exemplo: A nossa organização não é política em nenhum sentido. Apenas insistimos em ensinar a Palavra de Jeová Deus às pessoas, e que o façamos sem impedimentos. Não tentamos impedir as crenças ou o ensinamento que alguém desejar, mas só pedimos a liberdade de acreditar e ensinar o que concebemos ser o ensinamento da Bíblia, e, em seguida, deixar as pessoas decidirem em que acreditar. Nossa organização foi originalmente constituída nos Estados Unidos da América em 1884 sob o nome de Watch Tower Bible & Tract Society, e, em 1914, constituída sob as leis da Grã-Bretanha pelo nome da International Bible Students Association. Estas são apenas os nomes corporativos de nossa organização para legalmente levar adiante seu trabalho. O nome bíblico pelo qual somos conhecidos é 'testemunhas de Jeová'. Estamos empenhados exclusivamente em um trabalho beneficente. (SOCIETY, 1934, p. 136) Tradução do autor. Conforme analisa Gabriele Yonan, a declaração se resume em estabelecer 4 pontos: (1) refutar que as Testemunhas de Jeová são financiadas pelos judeus ou 53 No Anexo 1 constam os trechos originais em inglês. 103 comunistas, (2) declarar sua neutralidade política e interesses puramente religiosos, (3) reiterar sua oposição à Igreja Católica, vista por eles como uma instituição política e (4) afirmar serem discípulos de Cristo. A autora chama à atenção o fato de que a declaração não utilizou o termo Führer para se dirigir a Hitler, e não concluiu com a saudação Heil Hitler. Por outro lado, segundo ela, a inclusão “ingênua” de profecias sobre o fim do mundo, para um ditador que tinha planos de estabelecer um reino de mil anos, certamente não tornaria a mensagem bem recebida. Quanto às próprias Testemunhas de Jeová, algumas afirmações feitas na Declaração causaram desapontamento entre os participantes do congresso, alguns dos quais se recusaram a concordar com a declaração. (SOCIETY, 1975, p. 111) Alguns desses trechos seguem, com as sentenças polêmicas em grifo: Nós dedicamos nossas vidas e nossos recursos materiais ao trabalho de permitir que as pessoas obtenham uma visão ou compreensão da Palavra de Deus e, portanto, é impossível que nossa literatura e nosso trabalho seja uma ameaça para a paz e segurança da nação. Em vez de sermos contra os princípios advogados pelo governo da Alemanha, nós apoiamos sinceramente esses princípios e sublinhamos que Jeová Deus, através de Jesus Cristo, causará a realização completa destes princípios e dará às pessoas paz, prosperidade e o maior desejo de cada coração honesto. (SOCIETY, 1934, p. 136) Tradução e grifo do autor. O maior e mais opressivo império na terra é o império anglo-americano, ou seja, o Império Britânico, do qual os Estados Unidos da América fazem parte. Foram comerciantes judeus do império anglo-americano que criaram e que praticam o Alto Comércio como meio de explorar e oprimir os povos de muitas nações.54 Este fato particularmente se aplica às cidades de Londres e Nova York, a fortaleza do Alto Comércio. Este fato é tão manifesto na América que existe um provérbio a respeito da cidade de Nova York, que diz: "Os judeus são donos dela, os católicos irlandeses a governam, e os americanos pagam as contas”. Nós não 54 Sobre esta declaração específica, a entidade publicou a seguinte nota na revista Despertai! em 1998: “Essa declaração claramente não se referia ao povo judeu em geral, e lamenta-se caso tenha sido entendida mal e se tornado motivo de ofensa. Alguns têm afirmado que as Testemunhas de Jeová partilhavam da hostilidade para com os judeus que, naquele tempo, era comum ouvir-se pregar nas igrejas alemães. Isso é absolutamente inverídico. Por meio de suas publicações e de sua conduta durante a era nazista, as Testemunhas de Jeová rejeitaram os conceitos antissemitas e condenaram os maus-tratos que os nazistas infligiam aos judeus. Certamente, a bondade delas para com os judeus com quem dividiram a sua sorte nos campos de concentração refuta com eloquência essa acusação falsa.” (SOCIETY, 1975, p. 14) 104 temos nenhuma briga com qualquer uma dessas pessoas mencionadas, mas, como testemunhas de Jeová e em obediência ao seu mandamento estabelecido nas Escrituras, somos obrigados a chamar a atenção para a verdade a respeito a isso, a fim de que as pessoas possam ser iluminadas a respeito de Deus e seu propósito. (...) O atual governo da Alemanha declarou-se enfaticamente contra os opressores do Alto Comércio e em oposição à influência religiosa errada nos assuntos políticos da nação. Essa é exatamente a nossa posição. (SOCIETY, 1934, pp. 133, 134) Tradução e grifo do autor. Muitos dos presentes acharam que essas declarações indicavam um comprometimento da liderança, ou, pelo menos, não eram fortes o suficiente. Penton avalia essas declarações como “embaraçosas” (2004, p. 14), e Garbe pondera: “Ficou evidente que seus esforços [i.é. da liderança, n. do a.] para se adaptar à situação não poupou sua própria concepção religiosa. Ao contrário, afetou-a na própria essência. Qualquer um que tente melhorar sua posição diante de uma autoridade do “velho mundo” por fazer tais declarações, deixou para trás a posição de neutralidade que havia assumido como sua”. (GARBE, 2008, p. 89) Por outro lado, Yonan considera que “lendo- se a declaração no contexto da história das Testemunhas de Jeová na Alemanha, a história de sua resistência e sua firmeza durante o Holocausto, então o texto não se revela como uma declaração antissemita, buscando o favor de Hitler.” (HESSE, 2001, p. 340) O que mais demonstra, porém, que essa interpretação do texto não correspondia plenamente aos sentimentos do grupo foi o próprio fato de que vários presentes na leitura da declaração não a apoiaram. Conforme a própria literatura do grupo: Muitos na assistência ficaram desapontados com a “declaração”, visto que, em muitos pontos, deixava de ser tão forte como esperavam. (...) Grande número de irmãos recusaram-se a adotá-la. Não se podia dizer que a resolução fora adotada unanimemente. (SOCIETY, 1975, p. 111) Na época, houve inclusive suspeita de que Balzereit teria suavizado o texto de Rutherford ao traduzi-lo para o alemão. O Anuário de 1975 declara que Mütze, um assessor de Balzereit, acusou-o mais tarde de ter ‘amainado’ o texto original. O Anuário afirma que “não era a primeira vez” que Balzereit atenuara a linguagem clara das publicações, e, mais adiante, diz que a declaração foi distribuída, “muito embora tivesse sido atenuada”. Penton classifica a ação como uma tentativa de culpar Balzereit e isentar 105 Rutherford. (2004, p. 17) Entretanto, em 1998, na revista Despertai! foi feita a seguinte declaração: Havia o administrador da filial, Paul Balzereit, suavizado o texto do documento? Não, pois uma comparação dos textos alemão e inglês mostra que isso não aconteceu. Evidentemente, uma impressão ao contrário baseou-se em observações subjetivas de alguns que não estavam diretamente envolvidos na preparação da “Declaração”. As suas conclusões talvez também tenham sido influenciadas pelo fato de que Balzereit renunciou à sua fé apenas dois anos mais tarde. (TRATADOS, 1998, p. 14) De qualquer modo, apesar da adesão não ter sido unânime, não resultou em nenhum tipo de cisão no grupo, nem em alguma mudança em seu comportamento frente ao regime nazista. A Declaração foi impressa na forma de folheto, e cerca de 2,5 milhões de exemplares foram distribuídos logo nos dias seguintes ao congresso, inclusive pelos que não concordaram plenamente com ela. Exemplares foram encaminhados a Hitler e seus assessores, o de Hitler tendo sido acompanhado por uma carta. Qualquer abrandamento da perseguição aguardado, porém, seria apenas uma ilusão. (GARBE, 2008, p. 90) Como resume King, para efeitos de aliviar a proscrição, o resultado dessa declaração foi negativo. Nenhum outro grupo religioso jamais chegou a apresentar de modo tão explícito e completo sua posição de neutralidade, mesmo considerando os trechos que foram questionados. No entanto, ou, justamente por causa disso, nenhum outro grupo havia sido, até aquele momento, considerado um “inimigo implacável”. (KING, 1982, p. 142) As ações da SA passaram a ser cada vez mais violentas, incluindo prisões e espancamentos. Em agosto de 1933, cerca de 70 toneladas de publicações das Testemunhas de Jeová foram queimadas em público. (GARBE, 2008, p. 95) (HESSE, 2001, p. 145) (Figura 14) 106 Fig. 14 – Queima de livros da filial da Alemanha em Magdeburg. (PELLECHIA, 1994, p. 23) Os que se negaram a votar nas eleições para escolha dos parlamentares de 12 de novembro de 1933 eram identificados como inimigos e obrigados a desfilarem pelas ruas com placas com os dizeres “judeus”, “traidores da Pátria” ou “patifes”. (KING, 1982, p. 143) (Figura 15) Um episódio típico envolveu Max Schubert, Testemunha de Jeová na Saxônia, agente de passagens numa estação ferroviária, e que reiteradas vezes recusara- se a participar nas eleições do partido. Segundo o relato: Após terminar seu serviço numa tarde, foi preso por volta das 17 horas por um policial e levado à casa do diretor local do Partido Nacional- Socialista. Pequena carroça puxada por dois cavalos estava parada à porta. O irmão Schubert foi obrigado a ficar em pé no meio, com vários homens das SA sentados em volta dele, cada qual com uma tocha acesa na mão. Na frente se erguia um com uma corneta, e atrás outro, com um tambor, e se revezavam em soar o alarma para que todos olhassem o desfile. Dois homens das SA na carroça seguravam um grande letreiro que dizia: “Sou um patife e traidor da Pátria, porque não votei.” Atrás do desfile, formara alguém logo um grupo que continuamente repetia as palavras no letreiro. No fim da sentença, perguntavam: “Qual é o lugar dele?”, no que as crianças da multidão gritavam em uníssono: “Num campo de concentração!” O irmão Schubert foi levado pelas ruas da cidade de cerca de 15.000 habitantes durante duas horas e meia. A rádio de Luxemburgo noticiou isto no dia seguinte. (SOCIETY, 1975, p. 115) 107 Figura 15. Grupo de Testemunhas de Jeová cercadas por guardas da SS sob uma placa com os dizeres: “Somos traidores, nós não votamos”. (ZÜRCHER, 1938, p. 128)55 Vários perderam o emprego, os jovens foram expulsos da escola e os mais jovens foram retirados das famílias para serem criados por famílias nazistas ou instituições educacionais. (SOCIETY, 1975, p. 121) A sede jurídica das Testemunhas de Jeová nos EUA, a Watch Tower, também usou a página impressa fora da Alemanha para denunciar os acontecimentos. Desde o número de 16 de agosto de 1933, a revista The Golden Age56, regularmente apresentou informes do que acontecia na Alemanha. O Anexo 2 contém excertos de algumas dessas publicações. Em 1938, Franz Zürcher, membro da Watch Tower na Europa, elaborou um relatório detalhado do que acontecia na Alemanha, e o escritório cuidou de que fosse publicado na forma do livro Kreuzzug Gegen Das Cristentum (Cruzada Contra o Cristianismo), em alemão, francês e polonês. (Figuras 16 a 18) O livro continha uma descrição cuidadosa dos campos de concentração e do que era praticado ali. Incluía até plantas de alguns dos campos de concentração. O livro teve importante repercussão, e chegou a ser conhecido por Thomas Mann, novelista alemão ganhador do prêmio Nobel de literatura em 1929, que na época estava refugiado do regime nazista. Conforme 55 Disponível em: http://www.triangoloviola.it/pdf/1999-03-19-04-anl-krz-zug.pdf, acessado em janeiro de 2016 56 Hoje publicada com o nome de Despertai! 108 Penton, Mann ficou tão tocado pelo livro que escreveu uma introdução para ele. (PENTON, 2004, p. 30) Numa carta enviada ao escritório da Watch Tower, ele escreveu: Eu li o seu livro e sua documentação terrível com a mais profunda emoção. Não posso descrever o sentimento misto de aversão e ódio que encheu meu coração enquanto li esses registros de degradação humana e crueldade abominável. A fala humana falha na presença da perversidade indescritível revelada nessas páginas, em que são registados os sofrimentos terríveis de homens e mulheres inocentes, que sustentam firmemente sua fé. Ao ver tais condições indescritíveis, a voz de bom grado ficaria silenciosa. Mas ficar quieto serviria somente à indiferença moral do mundo, e ainda mais à desprezível política de não- interferência, assim como para tornar uma consciência culpada. Será possível chocar o mundo, mesmo por um momento, com esta sua apresentação desses fatos repugnantes? Dificilmente alguém se atreveria a esperar por isso. De qualquer forma, vocês fizeram o seu dever ao publicar este livro e trazer esses fatos à luz. Parece-me que não há apelo maior à consciência mundial. (SOCIETY, 1939b, p. 5) Figuras 16, 17 e 18 – Capa do livro Cruzada Contra o Cristianismo e plantas dos campos de concentração de Sachsenhausen e Esterwegen. Fontes: Fundação Arnold-Liebster e (PELLECHIA, 1994, p. 33) Essas publicações resultaram, entre outras coisas, numa enorme quantidade de cartas e telegramas de protesto enviados à chancelaria, tanto da Alemanha como de outras partes do mundo. Reynaud registra um relatório de Karl R. Witting, um agente 109 diplomático do general Ludendorff, que ilustra a reação de Hitler e das autoridades a toda essa correspondência. Refere-se a uma reunião de Witting com Wilhelm Frick, Ministro do Interior, em Berlin, 7 de outubro de 1934, convocada pelo próprio Frick. Durante a reunião Hitler entrou na sala, e Witting relata: Quanto chegou a hora de discutir as medidas tomadas pelo regime nazista contra a Associação Internacional das Testemunhas de Jeová na Alemanha, o Dr. Wilhelm Frick mostrou a Hitler vários telegramas do exterior protestando contra a perseguição dos Estudantes da Bíblia [Testemunhas de Jeová, n. do a.] no Terceiro Reich, e disse: “Se os Estudantes da Bíblia não entrarem na linha imediatamente empregaremos as mais duras medidas contra eles”. Nesse ponto Hitler ergueu-se num pulo com os punhos cerrados e gritou histericamente: “Essa raça será exterminada da Alemanha!”. Quatro anos depois dessa reunião, nos meus próximos sete anos no inferno dos campos de concentração em Sachsenhausen, Flossemburg e Mauthausen – que terminaram com a invasão dos aliados – fiquei convencido que a ira de Hitler não era uma simples ameaça. (REYNAUD; GRAFFARD, 2001, p. 26) Tradução do autor O Anuário da entidade complementa o relatório acima com o seguinte depoimento de Witting, registrado no cartório de Frankfurt (Mein), em 13 de novembro de 1947, nas palavras de Wittig: Nenhum outro grupo de prisioneiros dos citados campos de concentração ficou exposto à soldadesca SS de tal modo como ficaram os Estudantes da Bíblia. Era um sadismo marcado por infindável série de torturas físicas e mentais, as quais nenhuma linguagem no mundo pode expressar. (SOCIETY, 1975, p. 139) Assim, embora exista ainda uma considerável discussão sobre a ocorrência ou não de transigência em algumas afirmações da Declaração de Fatos por parte de Rutherford ou outros dirigentes, há acordo em dois aspectos: primeiro a Declaração não trouxe nenhum alívio da perseguição, ao contrário, só fez aumentá-la; segundo, o conteúdo da Declaração não alterou o comportamento do grupo como um todo, que prosseguiu agindo de acordo com a ideologia já exposta, não obstante o aumento da pressão. (PENTON, 2004, p. 6) Conforme reitera Garbe, a avaliação do comportamento das Testemunhas de Jeová como grupo no Terceiro Reich não deve estar subordinado a atividades polêmicas de sua entidade jurídica. (HESSE, 2001, p. 259) Nos anos seguintes a 1933, após um período inicial de reorganização, as Testemunhas de Jeová retomaram suas atividades às ocultas, a saber, o contrabando de 110 publicações, principalmente da Suíça, sua reprodução por meio de mimeógrafos, distribuição secreta, as reuniões em grupos pequenos em lares dos membros, e o proselitismo, sendo particularmente este último encarado como um dever acima de qualquer ordem humana. Os esforços no campo jurídico também prosseguiam, mas, assim como no caso da Declaração e de outras cartas enviadas, aparentemente só faziam aumentar o número de prisões, especialmente com a obrigatoriedade do serviço militar, estabelecida em 1935. (KING, 1982, p. 144) Por esta época também, os campos de concentração aumentaram em número e passaram a ser uma característica permanente do novo regime. O primeiro caso documentado de uma Testemunha de Jeová enviada a um campo de concentração foi o de Anna Seifert, enviada para o campo em Moringen em 9 de janeiro de 193557. Até 1935 havia 382 membros do grupo no campo de concentração de Sachsenhausen. (REYNAUD; GRAFFARD, 2001, p. 46) Entre 1935 até o começo da guerra, em 1939, o grupo intensificou as atividades às ocultas, de modo que o número de prisões aumentou bastante nesse período, sob vários pretextos, como mostra o gráfico abaixo. (Figura 19) Figura 19. Porcentagem de prisioneiros Testemunhas de Jeová em relação aos demais, de maio de 1937 a abril de 1945. (HESSE, 2001, p. 73) 57 Chryssides indica que teria sido em 9 de janeiro de 1934. (CHRYSSIDES, 2008, p. xxiv) 111 O fato de não efetuar a saudação nazista já se constituía motivo suficiente. Garbe registra dois exemplos. Em 1937 um jovem casal foi preso durante a cerimônia de seu próprio casamento por não terem feito a saudação, e em 1939 a Gestapo prendeu um membro da orquestra sinfônica de Düsseldorf por não ter correspondido à saudação nazista feita pelo maestro durante um concerto. Ele permaneceu preso por cinco anos nos campos de concentração de Sachsenhausen e Neuengamme. (GARBE, 2008, p. 144) Conforme explicou Simone Arnold Liebster, Testemunha de Jeová sobrevivente, em entrevista organizada por Rammerstorfer: P. Você usava a saudação nazista “Heil Hitler!” e/ou o cumprimento nazista? Liebster: Eu sabia que Heil, que significa salvação, pertencia apenas a Jesus, e eu não iria atribuí-la a ninguém. E isso não era por razões políticas. Se qualquer pessoa insistisse em ser cumprimentada por Heil, eu teria recusado. E foi o que eu fiz. (RAMMERSTORFER, 2013, p. 231) Mesmo nas condições sub-humanas dos campos de concentração, as Testemunhas de Jeová seguiam na tentativa de obter novos conversos. O diretor do campo de concentração de Moringen, por exemplo, Hugo Krack reportou que teve que colocar Maria C. em uma prisão solitária, pois, do contrário, ela seguia ‘tentando espalhar suas ideias entre as outras prisioneiras’. (HESSE, 2001, p. 51) Em um caso notável, Carlotte Tetzner, inicialmente uma prisioneira política, tornou-se Testemunha de Jeová no campo de concentração de Bergen-Belsen, e, quando transferida para o campo de Auschwitz negou-se a ser classificada como prisioneira política. Por isso ela própria fez e costurou um triângulo roxo sobre seu uniforme, o que a identificava como Testemunha de Jeová. (HESSE, 2001, p. 116) Essa tipo de identificação unificada começara a ser usada nos campos de concentração em 1938. Cada tipo de prisioneiro recebia um emblema costurado sobre o uniforme. (Figuras 20 a 23) Foi criada uma identificação especial para as Testemunhas de Jeová, que era um triângulo roxo. 112 Figura 20. Símbolos usados para identificação dos prisioneiros nos campos de concentração, incluindo o dos Bibelforscher (Testemunhas de Jeová), com o triângulo Roxo. (LIEBSTER, 2014) Figura 21 e 22. Triângulos Roxos com o número do prisioneiro e aplicado sobre o uniforme do campo de concentração. Fonte: Enciclopédia do Holocausto58 58 Disponível em: http://www.ushmm.org/search/results/?q=purple+triangles, acessado em dezembro de 2015 113 Figura 23. Prisioneiros no campo de concentração de Sachsenhausen com os triângulos de identificação. Fonte: Museu do Holocausto59 Garble destaca a importância do fato de as Testemunhas de Jeová terem uma identificação específica. Isso tornava claro que não eram considerados criminosos comuns, nem, especialmente, prisioneiros políticos. Tinham um ‘status especial’, inclusive para outros presos. A causa de sua prisão era ideologicamente diferente, assim como o tratamento que deveriam receber das SS, que os via como “objeto especial de ódio”. Garble assinala também que alguns Adventistas da Reforma que foram enviados aos campos também receberam esse triângulo. (GARBE, 2008, pp. 396–398 e nota 346) Quando a guerra teve início em 1939, cerca de 6000 Testemunhas de Jeová estavam presas e em campos de concentração, (PELLECHIA, 1994, p. vii) e já na época, algumas fontes, que não as da própria entidade, denunciavam os mau tratos que eles e os demais prisioneiros recebiam do regime nazista. Em 1939 o Governo Britânico publicou um documento chamado Papers Concerning the Treatment of German Nationals in Germany 1938-1939 (Documentos Referentes ao Tratamento de Cidadãos Alemães na Alemanha 1938-1939), com um relato detalhado das atrocidades cometidas contra os prisioneiros. Trechos desse documento referem-se às Testemunhas de Jeová. Num deles, segundo reportado por um ex-detento judeu, chamado no relatório de “Herr X” no 59 Disponível em: http://www.ushmm.org/wlc/en/media_ph.php?ModuleId=10005538&MediaId=880, acessado em dezembro de 2015 114 campo em que ele estava “havia 8000 prisioneiros, e os rumores eram que logo seriam 20.000. Havia 1500 judeus e 800 Estudantes da Bíblia [Testemunhas de Jeová, n. do a.]. Os demais eram políticos, os considerados criminosos e ciganos. Cada um usava um distintivo: judeus, uma estrela de Davi amarela, Estudantes da Bíblia roxo, etc. Os judeus podiam enviar e receber cartas duas vezes por mês. Aos Estudantes da Bíblia não era permitida nenhuma comunicação com o exterior, mas, por outro lado, suas rações não foram cortadas. Herr X falou com o maior respeito sobre esses homens. Sua coragem e fé religiosa eram notáveis, e professavam estar dispostos a sofrer até o limite pelo que entendiam ser a vontade de Deus para eles.” (OFFICE, 1939, p. 10) Muitos relatos pessoais de sobreviventes dão conta de que a violência perpetrada contra as Testemunhas de Jeová dentro e fora dos campos de concentração era sem precedentes, e com o objetivo claro de exterminar o grupo, se não física, pelo menos ideologicamente. (GARBE, 2008, p. 407) Por exemplo, as obras Persecution and Resistance of Jehovah’s Witnesses During the Nazi-Regime (Perseguição e Resistência das Testemunhas de Jeová Durante o Regime Nazista), editado por Hans Hesse, e Jehovah’s Witnesses and the Nazis (As Testemunhas de Jeová e os Nazistas) de Michel Reynald e Sylvie Graffard, contêm registros abundantes e detalhados de acontecimentos de vários campos de concentração. O pesquisador Bernhard Rammerstorfer produziu uma importante documentação em livro e vídeos, e para os relatos pessoais é destacada a obra Taking The Stand: we have more to say (100 questions – 900 answers) (Tomando posição: nós temos mais a dizer (100 perguntas – 900 respostas)). Nesse trabalho de 2013, estudantes de escolas de 30 países enviaram 1400 perguntas a serem feitas para sobreviventes do período nazista. Dessas foram selecionadas 100 perguntas, e submetidas a 9 sobreviventes: 1 prisioneiro político (Ernst Blajs), 1 cigano (Frieda Horvath, 3 judeus (Adolf Burger, Rene Firestone, Josef Jakubowicz) e 4 Testemunhas de Jeová (Leopold Engleitner, Simone Liebster, Hermine Liska, Richard Rudolf). Umas das entrevistadas, inclusive, é autora da única60 autobiografia completa publicada em português [de Portugal], Simone Arnold Liebster, da Alsácia, França, cuja 60 Tanto quanto identificado por essa pesquisa, referindo-se a publicações que não da própria Associação Torre de Vigia. Há muitas biografias publicadas na literatura da entidade. 115 família tornou-se Testemunha de Jeová em 1938. (Figura 24) Foi separada da família em 1943, aos treze anos, e enviada a uma escola reformatória nazista. Figura 24. Simone Arnold Liebster, em 1941, dois anos antes de ser enviada a uma escola reformatória nazista. (LIEBSTER, 2010, p. 2010) Seu livro Enfrentando o Leão: memórias de uma menina na Europa Nazi, consta da bibliografia desse trabalho. Liebster é palestrante ativa e mantém uma fundação com documentação e apresentações sobre o tema disponível para a o público e pesquisadores, a Arnold-Liebster Foundation, além de um portal com documentos e material didático em 5 idiomas. Além dessas e outras obras, a Enciclopédia do Holocausto (online), do Museu do Holocausto de Washington, mantém um banco de dados com biografias de sobreviventes e não sobreviventes. Porém, para sublinhar até que ponto a ideologia das Testemunhas de Jeová conflitou com o regime e as manteve intransigentes, um exemplo será citado. Johann Ludwig Rachuba foi um dos primeiros prisioneiros de Sachsenhausen em 1936. Era mineiro e, pelo menos inicialmente, fisicamente forte. Ele era punido constantemente e com sadismo pela SS, de várias formas diferentes tais como, chicoteamento, solitária, ser pendurado em um poste e permanecer em pé por várias horas sem refeição, empurrar uma carinho de areia usando as mãos e joelhos e com a 116 cabeça na areia, enquanto era chutado de todos os modos pelas botas dos guardas. Numa ocasião, o chefe da prisão ordenou que ele fosse enterrado até o pescoço numa fossa sanitária, e ele mesmo e outro soldado da SS urinaram sobre ele e o mantiveram na fossa por uma hora. Ele ainda estava vivo quando foi retirado posteriormente, mas fisicamente muito debilitado pelos mau tratos e pela hipotermia. (HESSE, 2001, p. 79) Posteriormente ele foi transferido para o campo de Wewelsburg, mas extremamente incapacitado, e faleceu em 3 de setembro de 1942, sem ter permitido que a SS alterasse sua posição religiosa. (GARBE, 2008, p. 407) É possível encontrar vários relatos semelhantes a esse, cujo espírito pode ser resumido em um relatório feito por um ex-detento, prisioneiro político, publicado em maio de 1937 no jornal Deutschland-Berichte, do partido exilado SPD (Sozialdemokratischen Partei Deutschlands), documentado por Garbe: O comportamento desses Estudantes da Bíblia é realmente incrível. Estas . . . pessoas demonstram um espírito incansável de resistência. Eles manifestam a coragem dos mártires e exibem uma firmeza que é sem igual dentro do campo de concentração. Desde o início, nós, os presos políticos havíamos feito um acordo entre nós de não nos rebelarmos e nos submeter a todas as instruções vindas da administração do campo de concentração. Sabíamos que os oficiais da SS apenas esperavam por uma oportunidade e não hesitariam em tomar medidas contra nós. Portanto, nós fazíamos a necessária saudação a Hitler, etc. No entanto, não há absolutamente nada que possa mover os Estudantes da Bíblia [a fazer a saudação a Hitler]. Sua fé em Jeová proíbe-os de fazê-lo e eles agem em harmonia com sua fé. Vários deles ainda se recusam a aceitar a oferta de serem libertados do campo de concentração. Alguns deles afirmam que vão ficar no acampamento até que eles sejam novamente autorizados a realizar suas atividades religiosas. (GARBE, 2008, p. 397) Tradução do autor. A “oferta de serem libertados” citada no relatório, era uma possibilidade real. Diferente de outros grupos como judeus, ciganos ou presos políticos, às Testemunhas de Jeová era facultada a opção de serem libertadas da prisão ou campo de concentração, bastando para isso que assinassem um documento chamado Erklärung (Declaração), cuja cópia e tradução da última versão seguem abaixo: (Figura 25) 117 Figura 25. Declaração que as Testemunhas de Jeová poderiam assinar para (supostamente) obterem a liberdade. Fonte: Arnold Liebster Foundation61 Tradução do Erklärung: DECLARAÇÃO Eu, ............................................................................................................................................................................ nascido a:................................................................, em ............................................................................. faço a seguinte declaração: 1. Eu vim a saber que a Associação Internacional dos Estudantes da Bíblia está divulgando ensinos falsos e, sob o manto da religião, empenha-se por objetivos hostis ao Estado. 2. Por conseguinte, abandonei inteiramente essa organização e libertei-me totalmente dos ensinos dessa seita. 61 Disponível em http://www.alst.org/zimgs2/archives/divers/erklarung.jpg, acessado em julho 2015. 118 3. Por meio desta dou garantia de que jamais voltarei a participar nas atividades da Associação Internacional dos Estudantes da Bíblia. Qualquer pessoa que venha a mim com os ensinos dos Estudantes da Bíblia, ou que de algum modo revele suas ligações com eles, denunciarei imediatamente. Toda publicação dos Estudantes da Bíblia que seja enviada ao meu endereço entregarei imediatamente à delegacia mais próxima. 4. Prezarei de agora em diante as leis do Estado, e em especial na eventualidade de guerra, de arma em punho, defenderei a pátria, e me integrarei de toda maneira na comunidade do povo. 5. Fui informado de que serei imediatamente colocado de novo sob prisão preventiva, se eu vier a agir contrário à declaração feita hoje. Assinatura: .......................................... Data: ................................... Conforme Garbe, o texto da declaração mudou com o tempo e inicialmente não era tão claro e incisivo. Por isso alguns membros não o encararam como uma violação da neutralidade e o assinaram. Porém, o número dos que assinaram posteriormente foi extremamente baixo, especialmente nos campos de concentração. (GARBE, 2008, p. 288) Conforme analisam Michael e Raquel Stivelman: O Erklärung pode ser considerado um símbolo adequado para representar uma das maiores diferenças entre a vitimização das Testemunhas e da maioria dos outros grupos: uma escolha lhes foi oferecida. Dar às Testemunhas tal direito de escolha era realmente uma exceção no processo deliberado de desumanização ao qual eram geralmente submetidos os prisioneiros dos campos. A recusa em assinar significava invariavelmente uma prisão mais longa e duras punições para a maioria das Testemunhas, mas também lhes dava uma oportunidade de renovar sua declaração de fé e confirmar sua identidade como Testemunha de Jeová. (STIVELMAN; STIVELMAN, 2001, p. 284) Apesar da promessa de liberdade, não era incomum que os que assinassem eram humilhados e desprezados como traidores pela SS. Alguns, depois de assinarem, pediram que o documento fosse cancelado. (SOCIETY, 1975, p. 178) 119 A SS exercia uma extrema pressão para que essa declaração fosse assinada, como ilustra o exemplo a seguir. No campo de concentração de Sachsenhausen, o comandante do campo Hermann Baranowski fuzilou August Dickmann, (Figura 26) de 29 anos, por negar-se a entrar para o exército. O fuzilamento ocorreu na presença de centenas de prisioneiros, entre ele o irmão mais novo de Dickmann. Depois da execução, os prisioneiros foram dispensados, exceto as Testemunhas de Jeová, a quem foram oferecidas cópias da declaração. Conforme o Anuário da entidade, nenhum deles aceitou. O irmão mais jovem de Dickmann foi avisado que seria o próximo, caso não assinasse. (SOCIETY, 1975, p. 168) O fuzilamento foi noticiado no jornal americano The New York Times de 17 de setembro de 1939 e Dickmann classificado como o primeiro alemão executado como objetor de consciência pelo governo nazista. (Figura 27) (TIMES, 1939) Um dos sobreviventes que testemunhou pessoalmente esse episódio, Richard Rudolf, relatou-o numa entrevista registrada por Rammerstorfer: P. Qual foi o momento mais assustador para você? Richard Rudolph: Isso foi em Sachsenhausen. Era início de setembro de 1939, quando a guerra tinha começado. Todos nós tivemos de ir no acampamento, e de longe que já podia ver um monte de cascalho empilhado para aparar balas. Na frente da pilha de cascalho havia uma parede de madeira, cerca de nove pés de comprimento e sete pés de altura. Nós ficamos alinhados em frente desta parede de madeira, cerca de duzentas Testemunhas de Jeová à direita, e duzentas à esquerda. À direita, perto da parede, havia uma caixa preta. Então, o nosso irmão na fé August Dickmann foi colocado à frente. O comandante disse que ele iria ser executado porque ele se recusara a defender a pátria alemã. Dickmann foi perguntado se ele mantinha sua decisão, e ele disse que sim, a manteria. Em seguida, ele foi ordenado a virar de costas. O pelotão de fuzilamento recebeu ordem de atirar, e nosso irmão na fé agosto Dickmann caiu no chão. Ele foi jogado para dentro da caixa. Seu próprio irmão [Heinrich Dickmann] teve de colocar os pregos para fechá-la. A caixa foi levada, e o comandante nos perguntou: "Qual de vocês vai assinar?" Dois homens, que já haviam assinado, deram um passo à frente. Eles anunciaram ao comandante que queriam cancelar suas assinaturas. Nem uma única das Testemunhas de Jeová assinou. Elas eram todas da mesma opinião que o nosso irmão na fé August Dickmann. Em seguida, os nascidos nos anos de 1911 e 1911 eram os próximos alvos. Depois de August Dickmann ter sido fuzilado, eles eram escolhidos um a um depois do trabalho à noite, e mortos a tiros na Industriehof, área de oficina. No final, havia sobrado apenas cerca de dez de nós. Fomos informados de que os presos tais e tais seriam fuzilados naquela noite depois da última chamada. Nós já tínhamos dado nosso último adeus a nossos irmãos na fé, as Testemunhas de Jeová. Eu tinha feito isso também. Depois disso, nós não tínhamos mais o menor medo 120 de sermos baleados. Quando foi a hora da chamada da noite, ela foi tão curta e rápida que nós achamos que algo devia ter acontecido. E, de fato, havia acontecido: o comandante que ordenou os disparos tinha tido um acidente vascular cerebral e morrido. (RAMMERSTORFER, 2013, p. 323) Figuras 26 e 27. August Dickmann e anúncio no The New York Times anunciando sua execução. Fontes: (RAMMERSTORFER, 2013, p. 323) e (TIMES, 1939) Ao passo que a guerra prosseguiu, os oficiais da SS se deram conta que as Testemunhas de Jeová poderia ser úteis de outras maneiras que não na guerra. Assim, as condições melhoraram para algumas, pelo fato de que passaram a assumir tarefas consideradas de confiança, com um certo grau de liberdade. Algumas trabalharam como pedreiros. Entre 30 e 50 trabalhavam no Sanatório Hohenlychen da SS, que ficava num local tranquilo, em Uckermark. Ele era frequentado por líderes do governo e da SS, como Josef Goebbels, Himmler e até o próprio Hitler. Nele as Testemunhas de Jeová trajavam roupas ‘civilizadas’ no trabalho. (GARBE, 2008, p. 443) Outras foram enviadas para instalações agrícolas. Em 1942, dez mulheres Testemunhas de Jeová foram designadas para cuidar da casa de Felix Kersen, médico pessoal de Himmler. Várias mulheres trabalhavam como cozinheiras, e babás para os oficiais da SS. Os oficiais usavam Testemunhas de Jeová como barbeiros, porque sabiam que eles “não usariam essa oportunidade para lhes cortar a garganta”. Isso era importante para os oficiais, já que sabiam que muitos estariam dispostos a matá-los, se tivessem oportunidade. (PENTON, 2004, p. 193) 121 O abrandamento das condições nos campos foi usado pelas Testemunhas de Jeová para aumentar seu trabalho às ocultas. Em alguns campos, eles chegaram a imprimir a revista A Sentinela dentro do campo de concentração. No campo de Neuengamme, próximo a Hamburgo, imprimiram cartões com suas mensagem para nos diferentes idiomas falados pelos pioneiros nos campos, e organizaram um trabalho sistemático de pregação. Isso contribuiu para que sua mensagem fosse disseminada pela Europa, com o final da guerra. (PENTON, 2004, p. 196) (SOCIETY, 1959, p. 171) Apesar do abrandamento, muitas foram libertadas apenas com a derrota da Alemanha, na chegada das forças aliadas. (Figura 28) A perseguição nazista e a guerra atingiu profundamente as Testemunhas de Jeová em termos numéricos e materiais. De acordo com seus registos os números foram: Durante o regime de Hitler, 1.687 deles perderam seus empregos, 284 seus negócios, 735 os seus lares e 457 não obtiveram permissão de exercer sua profissão. Em 129 casos, sua propriedade foi confiscada, a 826 pensionistas se negou o pagamento de suas pensões, e 329 outros sofreram outras perdas pessoais. Houve 860 crianças que foram retiradas do convívio dos pais. Em 30 casos, dissolveram-se casamentos devido à pressão por parte de autoridades políticas, e, em 108 casos, foram concedidos divórcios quando solicitados por cônjuges opostos à verdade [religião]. Um total de 6.019 foram presos, vários deles duas, três ou até mesmo mais vezes, de modo que, somando-se tudo, 8.917 prisões foram registradas. Juntando-se tudo, foram sentenciados a 13.924 anos e dois meses de prisão. (...) Um total de 2.000 irmãos e irmãs foram lançados nos campos de concentração, onde gastaram 8.078 anos e seis meses, uma média de quatro anos. Um total de 635 pessoas morreram na prisão, 253 tendo sido sentenciadas à morte e 203 delas tendo realmente sido executadas. (SOCIETY, 1975, p. 214) Apesar das perdas, no final da guerra em 8 de maio de 1945, a reorganização e retomada foi bastante rápida. De acordo com Penton, “desiludidos com a derrota e com o colapso do ‘Reich de Mil anos” de Hitler, muitos estavam dispostos a ouvir a mensagem” das Testemunhas de Jeová. (PENTON, 2004, p. 197) Em 1948, as operações de impressão foram retomadas, e em agosto a filial relatou um total de 36.526 membros ativos. (SOCIETY, 1975, p. 222) Em resumo, esse breve retrospecto histórico do confronto das Testemunhas de Jeová com o regime nazista, longe de esgotar o tema, buscou demonstrar com alguns poucos exemplos a forma em que as ideologias dos dois grupos se materializaram em ações, dos dois lados. 122 Figura 28. Um grupo de Testemunhas de Jeová em seus uniformes do campo depois da libertação. Campo de concentração Niederhagen bei Wewelsburg, Alemanha, 1945. Fonte: Holocaust Encyclopedia62 62 Disponível em http://www.ushmm.org/wlc/en/media_ph.php?ModuleId=10005394&MediaId=6291, acessado em janeiro 2016 123

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Conclusão
A proposta desta pesquisa foi identificar as causas ideológicas do conflito
ocorrido entre o partido nazista e o grupo religioso Testemunhas de Jeová, e demonstrar que, dos grupos religiosos ativos na Alemanha na mesma época, este grupo atraiu das autoridades nazistas uma atenção desproporcional à sua representação numérica, e diferente dos demais grupos. Conforme visto, a esmagadora maioria da população professava-se membro de uma religião cristã, compartilhando, portanto, as regras básicas de conduta comuns ao cristianismo, quanto ao respeito pelo próximo e pela vida. Este fator, evidentemente, não foi suficiente para evitar a tragédia que a história demonstrou ser o regime nazista. Há que se ressalvar, naturalmente, especialmente no início do movimento, que talvez não se imaginasse o alcance, as proporções, e principalmente, as consequências que o nazismo alcançaria. Num contexto de baixa estima nacional e enormes dificuldades econômicas, é possível entender que um líder carismático, que habilmente se colocou como o ‘salvador’, e pretensamente fundamentado em valores ‘cristãos’, tivesse granjeado a simpatia e apoio de boa parte da população – e dos grupos religiosos. É mais fácil realizar um juízo histórico hoje, à distância de várias décadas, e com todo o panorama histórico já tendo se desenrolado. Porém, conforme demonstrado nesse trabalho, esse aceno de melhores condições não foi suficiente para granjear o apoio de todos. No caso das Testemunhas de Jeová, a questão não estava absolutamente relacionada à melhora ou piora das condições de vida. Nem mesmo a questão inicial seria a violação do mandamento “não matarás”, caso fossem convocadas. As causas do conflito delas com o regime eram muito mais profundas. Muito antes disso, outras questões tornaram claro que o apoio ao regime exigiria delas um preço em termos ideológicos que elas não se demonstram dispostas a pagar. Em outras palavras, o que estava em jogo para elas e, em última análise, também para o estado nazista pode ser resumido na questão: qual era seu o centro de lealdade. Em termos numéricos, a ausência das Testemunhas de Jeová nas atividades pró- nazistas, pode ser considerada irrelevante, quando lembramos que eram um grupo de 25.000 numa população de 65.000.000. Seu apoio numérico, se conquistado, 124 dificilmente compensaria os custos que o estado certamente empenhou em sua tentativa de extermínio. Porém, a existência de outro ‘centro de lealdade’ certamente seria intolerável à ideologia do regime totalitário nazista. E de fato, não era somente a existência deste centro, mas a disposição de abrirem mão de tudo pela manutenção dessa lealdade. Conforme visto, isso incluía sua própria vida, e, diferente dos outros grupos, a vida, por assim dizer, de sua organização. Pode-se afirmar que, continuarem existindo e atuando da Alemanha, ou em qualquer outro país, não era um problema que eles teriam que resolver, mas competia a seu Deus. O próprio Heinrich Himmler, comandante da SS, referiu-se a essa lealdade. Segundo o comandante do campo de Auschwitz, Rudold Höss, tanto Himmler como Theodor Eicke, comandante de divisão da SS, “em várias ocasiões se referiam à fé fanática das Testemunhas de Jeová como um exemplo para suas tropas: ‘os homens da SS precisam ter a mesma fé fanática e inabalável no ideal Nacional Socialista e em Adolf Hitler que as Testemunhas têm em Jeová. Apenas quando todos os homens da SS acreditarem tão fanaticamente assim em sua própria filosofia o Estado de Adolf Hitler permanecerá seguro. Uma Weltanschauung (visão de mundo, filosofia de vida) só pode ser estabelecida e mantida permanentemente por fanáticos preparados para o extremo de sacrificar seus egos pelas suas ideias.’” (GARBE, 2008, p. 452) O estudo apontou algumas (não todas) exceções em outros grupos, particularmente o grupo dos Adventistas da Reforma, que também abriram mão de suas vidas ao não se submeterem aos ideais nazistas. Igualmente, nem todas as Testemunhas de Jeová mantiveram-se fieis a seus princípios, algumas tendo concordado em assinar a Declaração. Também, apontou que vários autores questionam se o embate teria que ter sido tão cruel, caso estratégias mais diplomáticas tivessem sido adotadas, talvez poupando muitas vidas e muito sofrimento. Finalmente, é evidentemente verdade que cada grupo adotou uma estratégia de sobrevivência – que como tais, funcionaram, pois continuam existindo até hoje, e não é proposta deste estudo fazer qualquer juízo de valor quanto a estas estratégias. A um alto custo, o grupo como um todo das Testemunhas de Jeová, calcado em sua ideologia, escolheu sua estratégia, e escolheu um outro ‘centro de lealdade’. E manteve sua escolha. 125 Finalmente, sem sombra de dúvida, há muito mais a estudar sobre o tema, no qual interagem abordagens teológicas, religiosas, sociais, históricas, psicológicas e políticas, entre outras. Este estudo apenas tangenciou algumas dessas questões. Se um de seus resultados for que ele induza, em alguma medida, a que este tema seja pesquisado sob outros aspectos, já terá cumprido uma excelente finalidade. 126
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Apêndices

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1. Cronologia dos acontecimentos na Alemanha
Principais fatos relacionados ao conflito entre as Testemunhas de Jeová e o
Partido Nazista coletados durante a pesquisa. 1919 11 de agosto: aprovada a nova constituição alemã, na cidade de Weimar, dando início ao período referido como República de Weimar, que terminou com a chegada do partido nazista ao poder, em 1933. 1920 1 de abril: O Partido dos Trabalhadores passa a se chamar Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. 1921 Julho: Hitler se torna líder do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou Partido Nazista. 1923 8 de novembro: Putsch (golpe) da Cervejaria de Munique. Fracassa a tentativa de golpe de Adolf Hitler de tomar o poder do governo bávaro. Os mortos pela polícia seriam transformados em heróis do nacional-socialismo por Hitler. Hitler foi preso, mas cumpriu apenas nove meses de pena. Apesar da derrota, o golpe teve um efeito positivo para a propaganda do partido que nascia. Enquanto esteve preso, Hitler escreve o Mein Kampf 1924 26 de fevereiro: início do julgamento de Hitler por alta traição. É sentenciado a 5 anos de prisão. 20 de dezembro: Hitler sai da prisão, após cumprir 264 dias de sua pena. Neste período ele escreve seu livro Mein Kampf. 127 1925 Hitler publica o primeiro volume do Mein Kampf. 1926 A filial alemã reporta 25.535 membros. 1927 Adolf Hitler publica o segundo volume do Mein Kampf . 1928 A Secretaria da Fazenda do Estado corta a isenção da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, e ela não é mais considerada caritativa. 1930 Março: Heinrich Brüning assume a chancelaria após renúncia de Hermann Muller. A Sociedade Torre de Vigia enfrenta problemas financeiros, e cancela o congresso em Berlin. Apesar do desemprego, as contribuições permitem que não haja interrupção na produção de publicações. 1931 26 de julho: No congresso em Columbus, Ohio, EUA, Joseph Franklin Rutherford anuncia que os Estudantes da Bíblia se chamariam agora Testemunhas de Jeová. Levou vários anos até que o novo nome fosse adotado na Alemanha, onde continuaram a ser conhecidos como Estudantes da Bíblia (Bibelforscher). 1932 Realizadas eleições presidenciais. Hitler se candidatou mas Hindenburg foi reeleito. 1933 A filial alemã reporta 25.000 membros ativos e 10.000 simpatizantes. 128 30 de janeiro: Hitler é nomeado chanceler pelo presidente Paul von Hindenburg, substituindo Kurt von Schleicher, que renunciou após um curto mandato. 27 de fevereiro: Incêndio no Riechstag (Parlamento). Hitler acusa os comunistas. 28 de fevereiro: Promulgado o Decreto de Emergência, suspendendo direitos civis. Cerca de 10.000 oponentes políticos são presos, incluindo Testemunhas de Jeová 5 de março: Última eleição democrática até o final da guerra. Hitler consolida a maioria no parlamento, concentrando todo o poder. As Testemunhas de Jeová recusam-se a participar nas eleições para o Parlamento, resultando em assédio e maus-tratos em muitos lugares. 21 de março: Dia Potsdam, um enorme espetáculo organizado por Goebbels na Igreja da Guarnição, protestante, de Potsdam, com a passagem simbólica do poder de Hindenburg para Hitler. 23 de março: aprovada a Ermächtigungsgesetz (Lei Habilitante), que, na prática, atribuiu direitos totalitários a Hitler. Março: A filial alemã das Testemunhas de Jeová é reestruturada e novas sociedades são formadas. Paul Balzereit se torna o encarregado. Falham as tentativas de negociação com o governo alemão para obter a permissão para continuar as atividades religiosas. 7 de abril: Emitida a “Lei para a Restauração da Carreira Pública”. Esta lei excluía todos os "inimigos" raciais e políticos do regime do serviço público. Daí em diante, todos os funcionários do setor público eram obrigados a fornecer uma chamada “Certificação de Ascendência Ariana (Ariernachweis)” documentando sua pureza racial. Essa lei resultou na perda de trabalho para muitas Testemunhas de Jeová, que já se recusavam a juntar-se à Frente Alemã de Trabalho, por entenderem ser uma violação de sua neutralidade. 10 a 19 de abril: As Testemunhas de Jeová são banidas em Mecklenburg-Schwerin, Bavária, Saxônia e em Hesse. 129 24 de abril: A polícia e a SA realizam buscas na filial da Sociedade em Magdeburg. 26 de abril: Göring estabelece a Gestapo na Prússia. As Testemunhas de Jeová são banidas na Turíngia e em Lippe. 28 de abril: Em vista da intercessão da sede da Sociedade Torre de Viga em Brooklyn, Nova York, EUA, a filial de Magdeburg recupera temporariamente o escritório. Todavia, o material confiscado é destruído. 30 de maio: Declaração da Conferência dos Bispos, em Fulda conclamando os católicos a colaborarem com o novo Reich. Abril a junho: As atividades das Testemunhas de Jeová são proibidas sucessivamente em várias cidades. 25 de junho: As Testemunhas de Jeová realizam um congresso em Berlim com 7000 presentes. É apresentada uma “Declaração” na tentativa de invalidar as acusações contra o grupo, e explicada a ação da liderança do grupo de buscar um entendimento com as autoridades alemãs. A tentativa fracassa. 27 de junho: autoridades civis ordenam que todas as congregações das Testemunhas de Jeová sejam investigadas. 28 de junho: a SS reocupa a sede da Sociedade Torre de Vigia em Magdeburg. A atividade é banida em Bremen. 20 de julho: Assinatura da Concordata entre von Papen e o Secretário-Geral do Vaticano, Cardeal Pacelli (futuro Papa Pio XII) garantindo liberdade aos Católicos Romanos e livre profissão religiosa da fé católica na Alemanha. Bispos nomeados pelo Vaticano prestam juramentos ao Terceiro Reich. O ministro do Interior do Reich, Wilhelm Frick, instrui todos os funcionários do governo a adotar a saudação a Hitler (Heil Hitler) 24 de julho: As Testemunhas de Jeová são banidas em toda Alemanha. 130 21 a 23 de agosto: queima pública de livros confiscados das Testemunhas de Jeová. 4 de outubro: Decreto do ministro do interior da Prússia, Hermann Göring, ordenando abrir fogo "sem piedade" contra os que distribuírem tratados em desobediência aos avisos da polícia. 12 de novembro: Eleições para escola dos parlamentares. Os que se negavam a participar foram expostos em público como traidores. Dezembro: Reinhard Heydrich, chefe da SS, ordena a prisão de todos os "fanáticos” Bibelforscher (Estudantes da Bíblia, ou Testemunhas de Jeová). 1934 Fevereiro: O primeiro-ministro da França, Pierre Laval, declara as publicações da Sociedade Torre de Bíblias e Tratados subversivas. 30 de junho – 1 de julho: "Noite das Facas Longas", sangrento expurgo comandado por Hitler contra afiliados que eram considerados uma ameaça, como os dirigentes da SA. Röhm é executado por ordem de Hitler Julho: 15.000 são ‘mantidos sob custódia’ na Prússia (eufemismo nazista para as prisões ilegais realizadas por motivos ideológicos ou raciais) 2 de agosto: Morre o presidente Hindenburg e é promulgada a lei sobre o Chefe de Estado do Reich Alemão, que unia as funções da presidência com a chancelaria. Hitler torna-se Führer e Chanceler do Reich. 7 a 9 setembro: Numa reação à crescente perseguição a seus membros, as Testemunhas de Jeová organizam um congresso internacional na Basileia, ao qual comparecem cerca de 1000 membros, apesar da proibição. Falham novas tentativas de negociar com o governo. 131 13 de setembro: Após protestos de lideranças dos EUA, o ministro do interior do Reich emite decreto anulando algumas das medidas contra as Testemunhas de Jeová. 7 de outubro: Hitler afirma que ‘essa raça [as Testemunhas de Jeová] será exterminada da Alemanha’, como reação às cartas e telegramas de protesto recebidas de vários países sobre o trabalho dado às Testemunhas de Jeová. 1935 9 de janeiro: Primeiro caso documentado de uma Testemunha de Jeová enviada a um campo de concentração, o de Moringen: Anna Seifert. 16 de março: Hitler decreta recrutamento militar. Objetores de consciência e Testemunhas de Jeová são enviados em número crescente para campos de concentração. 1 de abril: Promulgada lei proscrevendo todas as atividades das Testemunhas de Jeová. A supressão sistemática das Testemunhas de Jeová em todos os estados alemães havia sido dificultada pelo fato de que as medidas eram locais. Daqui em diante tratava-se de uma decisão federal. 13 de julho: O ministro do interior do Reich decreta a dissolução e confisco de todos os bens da Sociedade Torre de Vigia, das Testemunhas de Jeová. 15 de setembro: Emitidas as leis antissemitas de Nuremberg sobre a "proteção do sangue alemão". 1936 Abril: Crianças passam a ser retiradas da custódia dos pais, que passam a ser considerados “influência subversiva”. Entre 1936 e 1946, pelo menos 860 crianças foram afetadas por esta medida. 132 29 de abril: Emitida portaria dissolvendo a sociedade jurídica das Testemunhas de Jeová. 24 de junho: Criação de uma unidade especial na Gestapo encarregada da luta contra as Testemunhas de Jeová. Agosto a Setembro: As primeiras detenções em massa de Testemunhas de Jeová em todo o Reich são implementadas. Apesar do aumento da perseguição (até meados de 1937, pelo menos 17 Testemunhas morrem durante os interrogatórios e nas prisões) e da perda de liderança da organização, o grupo consegue se reorganizar. 21 de agosto: Circular emitida pela polícia secreta do Reich confiscando os passaportes das Testemunhas de Jeová que procuram viajar para Lucerna, Suíça, onde haveria um congresso. 4 a 7 de setembro: Congresso das Testemunhas de Jeová em Lucerna, no qual foi aprovada uma resolução enviada para Hitler e para o papa, expedida de Berna. 12 de dezembro: Cerca de 100.000 cópias da resolução de protesto do congresso de Lucerna são distribuídos em várias cidades alemãs; a campanha é repetida em fevereiro e março de 1937. Dezembro: Circular da Gestapo de Munique sobre as Testemunhas de Jeová que se recusam a prestar serviço militar. Dezembro: No campo de concentração de Moringen, mulheres Testemunhas de Jeová recusam-se a trabalhar para a Campanha de Socorro Inverno, resultando em isolamento, bem como proibições de recepção de todas as cartas e encomendas por meses. 1937 Durante o ano, as Testemunhas de Jeová em campos de concentração estão incluídas explicitamente nas instruções para infratores reincidentes, e são penalizados com atribuições de trabalho pesado e crescente assédio. No campo de concentração de 133 Dachau elas são presas em isolamento num quartel separado por arame farpado do resto do acampamento. Este modelo é mais tarde implementado no campo de concentração de Sachsenhausen. 12 de maio: Segundo uma circular expedida pela Gestapo de Düsseldorf, as Testemunhas de Jeová deveriam ser dali em diante colocados nos campos de concentração, mesmo nos casos em que não existia nenhum mandado de prisão, mas à simples base de suspeita. 22 de abril: Circulares da Gestapo orientam que todos membros do grupo devem ser mantidos “sob custódia” após o cumprimento da pena. Com isso, centenas de Testemunhas de Jeová são mantidas nos campos de concentração. Em Moringen, a percentagem das Testemunhas de Jeová aumenta de 17 por cento em junho, para 89 por cento em Dezembro de 1937. Em outros campos de concentração, as Testemunhas de Jeová compõe em media de 5 a 10 por cento dos reclusos. Nos acampamentos de mulheres de Moringen, Lichtenburg, e Ravensbrück, até o começo da Guerra as Testemunhas de Jeová são o grupo mais numeroso. Após o início da guerra, a sua proporção diminui: em Maut-Hausen de 5,2% para 0,12%; em Buchenwald de 3,3 por cento para 0,3%, ambos em 1944. 20 de junho: As Testemunhas de Jeová fazem uma campanha massiva na qual distribuem em toda a Alemanha uma "Carta aberta a todos na Alemanha que acreditam na Bíblia e amam a Cristo" descrevendo em detalhes as atrocidades infligidas contra elas. A Gestapo responde com renovada repressão. 5 de agosto: Circular da Gestapo ordenando que as Testemunhas de Jeová e objetores de consciência sejam mantidos presos nos campos de concentração caso sejam absolvidos pelos tribunais ou na conclusão de suas sentenças. Julho a Setembro: Segunda onda de prisões em massa de Testemunhas de Jeová. Apenas grupos regionais conseguem se reorganizar. 134 20 de dezembro: No campo de concentração para mulheres de Moringen, passa a ser utilizada uma “declaração” apenas para as Testemunhas de Jeová. Nela, o declarante oficializa seu rompimento com o grupo. Uma vez assinada, o declarante estaria livre de penas. Inicialmente essas declarações foram usados em vários campos de concentração e em prisões, com versões diferentes. Após 1937, ela é institucionalizada. 1938 Adotado nos campos de concentração o símbolo de um triângulo roxo para as Testemunhas de Jeová. Era a única denominação religiosa que recebeu seu próprio distintivo para se opor à ideologia nazista até o fim. 12 de março: A Alemanha invade a Áustria. Março: As Testemunhas de Jeová em campos de concentração são proibidas de receber qualquer correspondência. A correspondência recebida é carimbada por um censor: “O prisioneiro permanece, um Estudante da Bíblia teimoso e se recusa a rejeitar os falsos ensinos das Testemunhas de Jeová. Por esta razão os privilégios habituais de correspondência continuam negados a ele”. 6 de outubro: Testemunhas de Jeová no campo de concentração feminino de Lichtenburg se recusam a ouvir um discurso de rádio por Adolf Hitler por ocasião de ocupar a região de Sudentenland. A SS lança as mulheres fora de suas celas com mangueiras de água. Muitas mulheres não se recuperam dessa tortura. 9 de novembro: Noite dos Cristais: sucessão de atos violentos instigado por Adolf Hitler e Joseph Goebbels, seu Ministro da Propaganda, dirigidos contra pessoas identificadas com os judeus. Numa única noite, foram assassinados 91 judeus, e de vinte e cinco a trinta mil foram presos. Foram destruídas 7500 lojas judaicas e 267 sinagogas. 1939 30 de março: A Gestapo confisca os bens da sociedade jurídica das Testemunhas de Jeová em Praga. 135 27 de abril: Supressão de jornais comunistas na França. 8 de agosto: Portaria da Chancelaria do Reich estipulando que os colocados “sob custódia” (Schutzhaft) estavam sob a autoridade do chefe da SS e não mais no âmbito do Ministério da Justiça. 23 de agosto: Pacto de Não-Agressão Nazi-soviético. 1 de setembro: Invasão da Polônia. Data oficial do início da Segunda Guerra Mundial 15 de setembro: August Dickmann, Testemunha de Jeová de 29 anos, é executado publicamente no campo de concentração de Sachsenhausen. A notícia de sua execução é anunciada na rádio. 21 de setembro: Ministério Italiano do Interior elabora lista de assinantes da revista A Torre de Vigia (publicada pelas Testemunhas de Jeová) e solicita informações sobre as suas atividades. Outubro: A organização das Testemunhas de Jeová é proscrita na França. 19 de dezembro: No campo de concentração feminino de Ravensbrück, as Testemunhas de Jeová recusam-se a costurar sacos que supõem que serão usados como coldres de armas e, portanto, trabalho relacionado com a guerra. A SS tenta sem sucesso quebrar a resistência das mulheres com punições, como permanecer em pé por dias, submeter a fome e prisão em celas escuras. Este assédio continuou até março 1940. 1940 3 de janeiro: Circular da Polícia Fascista italiana (ORVA) constando uma lista com nomes de Testemunhas de Jeová. 30 de março: O Ministro do Interior da Bélgica proscreve as publicações das Testemunhas de Jeová por “minar a moral das tropas e da população”. 136 29 de maio: O comissário do Terceiro Reich, Arthur Seyss-Inquart, bane as Testemunhas de Jeová na Holanda. 8 de junho: Portaria do Escritório Central de Segurança do Reich (RSHA) orientando a prisão de todas as Testemunha de Jeová nos territórios do Terceiro Reich. Outubro: A Gestapo faz buscas por Testemunhas de Jeová na sede. 15 de novembro: O Gueto de Varsóvia é fechado. 1941 22 de junho: As Forças Armadas Alemãs (Wehrmacht) atacam a União Soviética. 3 de setembro: Primeiros testes das câmaras de gás são realizados em Auschwitz com a execução de 600 prisioneiros soviéticos e 300 reclusos doentes. 7 de dezembro: O decreto Nacht und Nebel (Noite e Nevoeiro) é emitido por Adolf Hitler e assinado por Wilhelm Keitel, chefe do alto comando das forças armadas alemãs. Determinava que as pessoas em territórios ocupados envolvidas em atividades destinadas a comprometer a segurança das tropas alemãs deveriam ser levadas imediatamente para a Alemanha, mesmo que "de noite e nevoeiro" onde seriam julgadas por tribunais especiais. O decreto visava contornar as convenções internacionais que regiam o tratamento de prisioneiros. 1942 De 1942 em diante: As condições melhoram para as Testemunhas de Jeová em campos de concentração. Por exemplo, as Testemunhas do sexo feminino são muito procuradas como empregadas domésticas por líderes da SS. Elas também são encarregadas de cuidar de seus filhos, embora em muitos casos os seus próprios filhos tinham sido removidos de sua custódia. Janeiro: Execuções de prisioneiros em câmaras de gás realizadas em massa pela primeira vez em Auschwitz-Birkenau. 137 8 de janeiro: Morre Joseph Franklin Rutherford. 20 de janeiro: Conferência de Wannsee, durante o qual os participantes coordenaram a solução final da “questão judaica”. 17 de julho: Batida (aprisionamento) do Velódromo d'Hiver, Paris; 12.884 judeus presos e mantidos no velódromo. 13 de novembro: Nathan Homer Knorr é nomeado presidente da Sociedade Torre de Vigia, nos EUA. 24 de novembro: Departamento de Estado dos EUA reporta dois milhões de judeus assassinados e um plano de extermínio em andamento. 17 de dezembro: O Secretário de Assuntos Estrangeiros do governo inglês declara as condições abomináveis dos prisioneiros dos alemães, tornando reconhecida a existência do Holocausto. 1943 1 de fevereiro: Início da operação da Escola Bíblica de Gileade, nos EUA, das Testemunhas de Jeová, com o objetivo de formar missionários para o trabalho internacional. 19 de abril: Levante no gueto de Varsóvia. 2 de agosto: Insurreição armada dos presos no campo de extermínio de Treblinka. 1944 6 de março: Dr. Robert Ritter anuncia em uma carta ao Presidente do Conselho de Pesquisa do Reich (Reichsforschungsrat) seu plano para começar investigações genealógicas da ascendência racial e genética das Testemunhas de Jeová no campo de concentração de Ravensbrück. 138 21 de julho: Himmler menciona em uma carta o seu plano para liquidar as Testemunhas de Jeová depois da guerra na zona fronteiriça adjacente à União Soviética. 1 de agosto: Ciganos executados em câmaras de gás em Auschwitz-Birkenau. 1945 15 de janeiro: Censo interno do SS-WVHA (escritório de coordenação da solução final para a questão judaica da SS) enumera 511.537 homens e 202.674 mulheres em campos de concentração. 18 de janeiro: Evacuação de Auschwitz. 28 de abril: Libertação do campo de concentração de Ravensbrück. 29 de abril: A entrada de tropas norte-americanas no campo de concentração de Dachau e libertação dos prisioneiros. 30 de abril: Suicídio de Hitler em seu bunker de Berlim. 2 de setembro: Rendição do Japão. Termina a Segunda Guerra. 9 de setembro: Reunião dos membros da filial alemã em Magdeburg da Associação Internacional dos Estudantes da Bíblia; no mesmo mês a organização é registrada como Associação (Vereinsregister) na corte do magistrado de Magdeburg. 14 de novembro: Começam as deliberações no Tribunal de Crimes de Guerra de Nuremberg. 1 de julho: Registrada a mudança de nome para Testemunhas de Jeová, na filial de Magdeburg. 1946 1 de outubro: Veredito do tribunal de Nuremberg. 139

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2. As Testemunhas de Jeová no Brasil

As Testemunhas de Jeová iniciaram sua atividade no Brasil no início da década de 20, no Rio de Janeiro, onde também foi estabelecida a primeira filial. No período abordado por esta pesquisa, e também durante o regime militar no Brasil, o grupo foi alvo de proscrição. A tese de mestrado de Eduardo Góes de Castro, orientada por Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo, trata deste período. Atualmente, segundo os dados publicados no Anuário de 201663, referentes a 2015, alguns números são, com alguns esclarecimentos: • Total de membros ativos: 787.470 – são considerados ativos apenas aqueles que participam no trabalho de divulgação de porta em porta, e não aos que frequentam as reuniões • Assistência à Celebração da Morte de Cristo: 1.743.624 – na única celebração religiosa guardada pelo grupo é feito um trabalho de divulgação mais intenso. Normalmente essa reunião é a de maior audiência no ano. • Número de estudos bíblicos: 863.612 – refere-se ao número de sessões diferentes de treinamento antes que alguém chegue a ser batizado. Pode haver uma ou mais pessoas que participem do estudo. • Membros batizados em 2014: 28.349 – dos que participaram das sessões de treinamento, estes foram considerados aptos para serem batizados. Apenas estes são considerados Testemunhas de Jeová. • Crescimento em relação a 2014: 3% - calculado com base no total de membros ativos. • Número de congregações: 11.802 – a congregação é o grupo local que frequenta o mesmo Salão do Reino. Cada congregação é dirigida por um grupo de cerca de 3 ou 4 pessoas (usualmente mais nos grandes centros), chamados de “anciãos”. Os locais de reunião são chamados de “Salões do Reino”, e é comum que duas ou mais congregações utilizem o mesmo prédio, em horários diferentes. São dois encontros semanais, usualmente um durante a semana e outro no final de semana. Até recentemente os Salões eram construídos com mão de obra voluntária local. No final dos anos 90, deu-se início a um programa de construção rápida, com uma equipe permanente itinerante e apoio voluntário local, em regime de mutirão, em que um Salão é construído em menos de 2 meses. (Figura 29) 63 Disponível em https://www.jw.org/pt/publicacoes/livros/, acessado em janeiro de 2016. 140 Figura 29. Salão do Reino construído em 44 dias, no município de de Brumado, Bahia, em novembro de 2011, com capacidade para 155 pessoas. Fonte: Jornal Brumado Agora64 Atualmente a filial do Brasil está estabelecida no município de Cesário Lange, SP. De lá é feita a coordenação da obra, e também a impressão das publicações para o Brasil e alguns outros países. (Figura 30) De acordo com o site da entidade no Brasil, a filial imprime anualmente 36 milhões de Bíblias, livros e brochuras e despacha em média 7 mil toneladas de publicações por ano em mais de 90 idiomas. Os trabalhadores não ministros voluntários, e moram na propriedade, que conta com blocos residenciais e de suporte habitacional para cerca de 1500 habitantes. Figura 30. Filial do Brasil, em Cesário Lange, SP. Fonte: folheto Bem-Vindo à sede das Testemunhas de Jeová no Brasil, distribuído na visitação pública.65 64 Disponível em http://www.brumadoagora.com.br/antigo/2011/11/12/testemunhas-de-jeova- inauguram-novo-salao/, acessado em janeiro de 2016. 65 Disponível em https://www.jw.org/pt/testemunhas-de-jeova/escritorios/brasil/, acessado em janeiro de 2016



Pr. Jônatas David Brandão Mota



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