PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Marco Antonio Simões
As Testemunhas de Jeová e o Regime Nazista: uma análise das causas ideológicas do conflito
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
São Paulo
2016
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais sob orientação da Profa. Dra. Maria Helena Villas Boas Concone
São Paulo
2016
Banca Examinadora
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Dedico esse trabalho à memória da minha mãe.
Agradecimento
Várias pessoas tornaram possível a realização deste trabalho, e a menção feita aqui não é suficiente para expressar a importância que tiveram. Ainda assim, faço registrar minha imensa gratidão à minha orientadora, Profa. Dra. Maria Helena Villas Boas Concone, que com sua sabedoria e gentileza forneceu as indicações que deram o formato a essa pesquisa.
Agradeço sinceramente aos meus professores da PUC-SP, por suas valiosas contribuições à minha formação. Todos, em alguma medida, estão presentes nesse trabalho: Prof. Dr. Rinaldo Sérgio Vieira Arruda, Antropologia; a Profa. Dra. Maura Pardini Bicudo Veras, Sociologia e Alteridade; Profa. Dra. Teresinha Bernardo, Circuitos Religiosos e Memória; Profa. Dra. Leila Maria da Silva Blass, Seminário de Pesquisa; Prof. Dr. Silas Guerriero, Novas Religiões, Novas Espiritualidades, a quem agradeço inclusive pelas excelentes sugestões quando da qualificação deste trabalho.
Recebi também a ajuda inestimável, como em todos projetos da minha vida, de minha esposa, Maria Alice, e agradeço a ela e à minha filha Ângela por colaborarem nas muitas horas em que tive que me ausentar de seu convívio para dedicar-me a esta pesquisa, e por me incentivarem sempre, especialmente diante do desafio emocional que ela representou. Aos que fizeram a leitura atenta dos manuscritos e contribuíram com sugestões importantes, em particular meu sobrinho Vinícius, registro minha gratidão. Recebi a colaboração de algumas pessoas que solicitaram permanecer anônimas, solicitação respeitada aqui, mas que saberão de minha gratidão também.
Finalmente, agradeço àqueles de quem conheci as histórias, os medos, as dúvidas, a coragem, a fé. Convivi com eles nesses anos, e é quase como se os tivesse conhecido pessoalmente. Foi um privilégio. Que bom seria se seus acertos, e seus erros, fossem sempre ouvidos, para que histórias como as deles não tenham que ser contadas no futuro.
“... a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti".
John Donne
Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar o confronto ocorrido entre o Partido Nazista alemão e o grupo religioso Testemunhas de Jeová, chamados na época de Bibelforschers (Estudantes da Bíblia). O grupo posicionou-se ideologicamente contra as propostas do Partido Nazista, e o fez de maneira inflexível, a ponto de se tornar alvo de uma perseguição de intensidade proporcionalmente superior aos demais grupos religiosos perseguidos ou banidos pelo Regime, como será demonstrado. A pesquisa examinará o surgimento e desenvolvimento do grupo, com ênfase na constituição das doutrinas que possibilitaram o confronto. Também examinará o desenvolvimento da ideologia nazista, nos aspectos em que se opôs à posição manifesta pelo grupo. Sobre o partido nazista, ainda será feita uma análise como ele mesmo sendo uma religião. Estratégias de sobrevivência de outros grupos também serão estudadas como parâmetro de contextualização. Por fim, alguns fatos ilustrativos do conflito propriamente serão apresentados e analisados, como demonstração da materialização do embate ideológico. Embora as Testemunhas de Jeová tenham sido objeto de estudo sob outros aspectos, é possível constatar que o embate deste grupo com o Partido Nazista tem sido pouco abordado no Brasil, talvez devido a tratar-se de um grupo pequeno na Alemanha no período tratado nesta pesquisa. Ainda que o seja por vezes, o aspecto considerado é eminentemente histórico. O propósito deste trabalho é identificar e analisar as causas ideológicas do conflito.
Palavras-chave: Testemunhas de Jeová, Bibelforscher, nazismo, conflito ideológico, Estudantes da Bíblia, Holocausto, Terceiro Reich
Abstract
The objective of this paper is to analyze the confrontation occurred between the German Nazi Party and the religious group Jehovah's Witnesses, called at the time Bibelforschers (Bible Students). The group has positioned itself ideologically against the Nazi Party's proposals, and did so adamantly, that became the subject of an intensity of persecution proportionally higher than the other persecuted religious groups and banned by the regime, as will be shown. The research will examine the emergence and development of the group, emphasizing the establishment of the doctrines that made possible confrontation. Also it will examine the development of Nazi ideology in ways that opposed the position expressed by the group. About the Nazi party, it will still be analyzed as he himself being a religion. The strategies for survival adopted by other groups will also be studied for contextualization purposes. Finally, some illustrative facts of the conflict itself will be presented and analyzed, as a demonstration of the materialization of the ideological conflict. Although Jehovah's Witnesses have been studied in other ways, it is possible to see that the conflict of this group with the Nazi Party has been little studied in Brazil, perhaps because of being a small group in Germany in the period treated by this research. And when mentioned, it is usually under an aspect eminently historic. The purpose of this work is to identify the ideological causes of the conflict.
Keywords: Jehovah's Witnesses, Bibelforscher, Nazism, ideological conflict, Bible Students, Holocaust, Third Reich
Introdução
OBJETIVOS DESTA PESQUISA
- Esse estudo examinará as causas ideológicas do confronto entre o Partido Nazista e a organização religiosa Testemunhas de Jeová
- e demonstrará que das entidades religiosas atuantes na Alemanha nazista, as Testemunhas de Jeová foram percebidas pelo Partido como uma ameaça especial,
- e foram, desde o princípio, alvo de perseguição intensa com o objetivo de sua completa eliminação,
- objetivo que teve seu clímax no conjunto de ações que veio a ser conhecido como o Holocausto.
- Um resgate histórico deste embate será feito em certa medida, com o objetivo de evidenciar as principais concepções de ambos os lados que não somente possibilitaram, mas tornaram o conflito inevitável.
- Será realizado também um exame do contexto religioso e das posições adotadas por outras denominações religiosas com o fim de justificar a proposta de demonstração.
- Uma abordagem história detalhada está além do escopo dessa pesquisa, mas seria um tema interessante, dada à pouca literatura disponível em português.
- Visto tratar-se de um grupo bastante pequeno em relação a outros grupos afetados, notadamente os judeus, cuja cifra chegou a milhões, o conflito entre as Testemunhas de Jeová e o Estado durante o Terceiro Reich alemão poucas vezes tem sido objeto de estudo, estando elas, na expressão do historiador Detlef Garbe, entre as “vítimas esquecidas do nazismo”. (GARBE, 2008, p. 3)
- Durante o período analisado nesse trabalho, a Alemanha contava com cerca de sessenta e cinco milhões de habitantes, sendo que destes entre vinte e vinte e cinco mil eram Testemunhas de Jeová, ou seja, uma proporção bastante pequena de cerca de 0,04% da população.
- Apesar de numericamente tão pequeno, o grupo demonstrou sua convicção ideológica contrária aos ideais nazistas mesmo em face da perda de valores e direitos universais como a liberdade, a família e a integridade física, para não mencionar a extrema violência a que foi submetido.
- Quase a totalidade dos membros foi afetada de algum modo, sendo que, praticamente a metade do grupo foi preso ou torturado nos campos de concentração.
- Dois mil e quinhentos morreram devido à violência ou privações, e 253 foram executados. Cerca de 800 crianças, filhos de Testemunhas de Jeová, foram afastadas de suas famílias e enviadas quer a reformatórios, quer a outras famílias. (HESSE, 2001, p. 251)
- As ações do partido nazista no sentido de calar seus oponentes tiveram seu auge no Holocausto, um dos maiores e mais devastadores golpes de toda a história contra a humanidade civilizada.
- Ele atingiu um grande número de diferentes grupos, cujas vítimas sofreram, conforme preconizado pelo prof. Joseph Conway:
(1) pelo que eram, como os judeus, ciganos, homossexuais e deficientes,
(2) pelo que fizeram, como os ativistas políticos e soldados inimigos, e
(3) pelo que se recusaram a fazer, como as Testemunhas de Jeová e outros grupos religiosos – ou membros individuais desses grupos. (HESSE, 2001, p. 9) - No auge da repressão que sofreu durante o regime nazista, o grupo foi chamado pelo ditador Adolf Hitler de ‘raça a ser exterminada’. (PENTON, 2004, p. 167) Ludwig Wurm, membro da SS e testemunha ocular dessa ocasião relata em sua biografia:
Daí veio a Anschluss, ou anexação, da Áustria à Alemanha, em 1938, e o partido nazista tornou-se legal. Pouco depois eu estava entre os membros leais do partido convidados por Hitler, naquele mesmo ano, para assistir ao anual comício monstro do partido do Reich, no Campo Zeppelin, em Nuremberg. Ali eu vi Hitler exibir o seu crescente poder. Seus discursos bombásticos, que enfeitiçavam a assistência, eram cheios de ódio contra todos os opositores do partido nazista, incluindo os judeus de todo o mundo e os Estudantes Internacionais da Bíblia, hoje conhecidos como Testemunhas de Jeová. Lembro-me claramente de sua jactância: “Este inimigo da Grande Alemanha, essa raça de Estudantes Internacionais da Bíblia, será exterminada da Alemanha.” Eu não conhecia nenhuma Testemunha de Jeová, de modo que me indagava quem seria essa gente tão perigosa à qual ele se referia com tanto rancor. (WURM, 1990, p. 12) Grifo do autor
- Além disso, o Holocausto foi, essencialmente, uma manifestação brutal do poder e da organização totalitária do estado germânico.
- A força desse estado dependia ou se apoiava também, na construção de uma identidade germânica, profundamente abalada com a derrota na Primeira Guerra Mundial, e com as sanções impostas pelo Tratado de Versalhes.
- Quaisquer manifestações, voluntárias ou não, contrárias a essa identidade foram reprimidas ou se tornaram alvo de destruição.
- Não obstante, vale aqui ressaltar que reiteradas vezes a própria existência do Holocausto, ou pelo menos sua extensão, tem sido questionada de forma mais ou menos explícita, ainda que poucas décadas tenham se passado desde sua ocorrência. (MONIZ, 2003)
- Um dos maiores influenciadores desse movimento, chamado ‘revisionista’ foi o historiador francês Paul Rasinier (1906 – 1967).
- Suas obras conquistaram muitos leitores na Europa, e foram traduzidas nos EUA pelo historiador Harry Elmer Barnes, também revisionista.
- No Brasil, o empresário Siegfried Ellwanger Castan é autor de vários livros nos quais nega o Holocausto, sendo que, para ele, a documentação histórica que o demonstra seria uma tentativa de ‘enganar a humanidade’. (CASTAN, 1988, p. 12)
- As propostas desses autores e simpatizantes, aliadas à rápida propagação de suas ideias através da Internet e das redes sociais, têm sido uma das fontes de inspiração para grupos que buscam restaurar os ideais nazistas, ou seja, grupos neonazistas.
- Somente na Alemanha, cerca de 180 pessoas foram mortas por grupos de extrema direita.
- Conforme explica o jornalista Eduardo Szklars, “muitos neonazistas não falam em ‘pureza racial’, mas em ‘pureza cultural’.
- E não só perseguem judeus, gays ou Testemunhas de Jeová, mas também imigrantes, muçulmanos, negros, pobres ou qualquer outra minoria que ameace sua identidade ‘superior’”. (SZKLARZ, 2014, p. 228)
- onforme alerta Maria Luiza Tucci Carneiro, historiadora e pesquisadora do tema:
Atualmente, testemunhamos jovens neonazistas (skinheads) e representantes políticos de grupos de extrema direita voltando a bradar por Hitler, empunhando a suástica tatuada e proferindo slogans racistas que pregam a morte aos judeus, negros, prostitutas, homossexuais e outras minorias. Pelo visto, nem todos aprenderam a lição. Muitos nem sequer conhecem as verdadeiras dimensões do que foi o nazismo ou as consequências das absurdas teorias racistas de Adolf Hitler e seus seguidores para a humanidade. (CARNEIRO, 2005, p. 7)
- Conforme a antropóloga Solange Couceiro de Lima, vários grupos no Brasil têm sido influenciados também pelo xenofobismo que está acontecendo na Europa. (LIMA, 2006)
- Em 1991 a militância neonazista na Alemanha já ultrapassava os 40 mil membros. (WEIL; GAUTIER, 1994, p. 282)
- No Brasil, conforme um estudo sobre o neonazismo feito pelo Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinquente, em 1999 existiam cerca de 30 gangues que professavam ideais nazistas. (PINSKY; PINSKY, 2004)
- Vários desses grupos aparecem com frequência na mídia, como responsáveis por espancamentos de negros e homossexuais.
- Do ponto de vista ideológico, é emblemático para esta pesquisa um caso ocorrido em 20 de abril de 1996, quando um dos grupos neonazistas de São Paulo, o UNB – Único Nacionalista Brasileiro, promoveu a distribuição de um panfleto antissemita na Av. Paulista, região central de São Paulo, SP, descrevendo Hitler como o “Messias Salvador da Humanidade”, tendo sido levado ao suicídio pelos “maléficos seres sionistas, que inventaram um falso massacre de seis milhões de judeus.” (KAHN, 1999, pp. 73, 94)
- Ainda que não levado a esse extremo, para as gerações mais recentes parece haver um recrudescimento da importância e significado do totalitarismo exercido durante o Terceiro Reich, ou, pior ainda, conforme o Dr. Efrain Zuroff, apesar da crescente disponibilidade de material histórico, há “uma falha em aprender as lições necessárias daquele trágico período”. (ZUROFF, 2014)
- Como alerta Bauman “mesmo que seu choque [o do Holocausto, n. do a.] tenha sido único e exigisse uma rara combinação de circunstâncias, os fatores que se reuniram nesse encontro eram, e ainda são, onipresentes e ‘normais’.
- Não se fez o suficiente depois do Holocausto para sondar o potencial medonho desses fatores e menos ainda para impedir seus efeitos potencialmente aterradores”. (BAUMAN, 1998, p. 16)
- Ao mesmo tempo, o avanço da globalização coloca as sociedades cada vez mais em contato com diferentes culturas, desafiando a capacidade de tolerância e convívio com ideologias divergentes.
- Por essas razões, o estudo da experiência de uma minoria de ideologia diferente da estrutura vigente de poder, minoria essa que resistiu às tentativas de renúncia de suas convicções, e, por fim, de extermínio, justifica-se por poder lançar luz a caminhos que impeçam a repetição de ações de intolerância que violem os direitos e valores naturais superiores da ética humana.
- O objetivo do trabalho será identificar e examinar as razões que levaram ao confronto, tanto por parte do grupo afetado, as Testemunhas de Jeová, como por parte dos representantes do estado nazista.
1.1 Origem do grupo e primeiras doutrinas
- O cristianismo, cujas sementes foram lançadas no início do primeiro século de nossa era, foi uma força organizadora do mundo ocidental de extrema importância durante cerca de 1500 anos.
- A partir do final do século XVI, com o Renascimento, porém, esse mundo “começou a encontrar novas fontes de inspiração para si no ideal do progresso”. (DAWSON, 2010, p. 103)
- A fé na razão e na capacidade de compreensão do homem e sua responsabilidade pelo seu próprio destino passaram a nortear os desenvolvimentos sociais, que encontraram nos ideais Iluministas e na Revolução Francesa algumas de suas expressões mais eloquentes. (CASTRO, 2004)
- Esses desenvolvimentos situam-se na origem de muitos dos acontecimentos do século XIX.
- A humanidade entrava no período do maior desenvolvimento da manufatura, dos transportes rápidos e dos meios de comunicação de toda a História.
- O aperfeiçoamento da máquina a vapor por James Watt (1736-1819) no final do século anterior contribuiu decisivamente para o avanço da Revolução Industrial, que, por sua vez, ocasionou profundas transformações sociais,
- entre outras, a migração da população campesina para as metrópoles, e o surgimento do fenômeno ‘multidão’.
- A locomotiva a vapor levou à expansão das ferrovias, que passaram a cruzar países e continentes.
- O telefone (1876), o fonógrafo (1877), a luz elétrica (1879) e o linotipo (1884), vieram a juntar-se ao exército de invenções que pareciam colocar nas mãos do homem a completa responsabilidade por seu destino.
- Nesse ambiente, a religião esteve no centro das investigações dos fundadores da Sociologia, contemporâneos a esses desenvolvimentos.
- Auguste Comte (1798-1857), o pai do positivismo, propunha que a ciência e a ordem eram os fatores determinantes para o avanço sociocultural e econômico, em detrimento da religião, à qual ele relegava a uma fase pré-modernista da sociedade. (MARIANO, 2013, p. 233)
- Em seu conceito, a história da humanidade pode ser dividida em três estados progressivos: teológico, metafísico e positivo.
- A religião seria uma característica ligada ao primeiro estado, e seria inteiramente superada na sociedade futura e moderna. (HOCK, 2010, p. 102)
- Émile Durkheim (1858-1917), buscando analisar a essência do sentimento religioso, por um lado entende que a ciência contesta a posição da religião como detentora da autoridade sobre a produção do conhecimento, mas, por outro lado não pode impedir que os homens atuem sob a autoridade de uma fé religiosa, já que o aspecto sagrado, para ele, é inerente à índole humana, “que não pode amar e honrar conjuntamente nada além dele próprio”. (WILLAIME, 2012, p. 36)
- Conforme explica Silas Guerriero, (2013, p. 249) este sentimento religioso, porém, vem da ideia do sagrado em oposição ao profano, e não do reconhecimento da presença de seres espirituais ou sobrenaturais, conforme postulado por Edward B. Tylor (1832-1917). (HOCK, 2010, p. 23)
- Durkheim vê, portanto, a religião puramente como uma construção social, em que, as religiões tradicionais teriam seu papel normativo corroído pelo crescente individualismo. (MARIANO, 2013, p. 234)
- Conforme ele explica: “Se a religião engendrou tudo o que há de essencial na sociedade, é que a ideia da sociedade é a alma da religião.
- As forças religiosas, são, portanto, forças humanas, forças morais”. (DURKHEIM, 1996, p. 462)
- Weber, por sua vez, busca demonstrar em sua obra que o protestantismo, em suas principais derivações, a saber, o calvinismo, o pietismo, o metodismo e as seitas anabatistas, repetiam, em maior ou menor grau, o discurso do “espírito capitalista”, para cuja definição ele utiliza do discurso de Benjamin Franklin, em “Retrato da Cultura Americana”. (WEBER, 2004, pp. 42, 82–167)
- Assim, em sua leitura, a religião teria um papel fundamentalmente utilitário, o qual, junto com o avanço da ciência, resultaria em seu desencantamento e perda de seu valor cultural. (MARIANO, 2013, p. 234)
- É certo que esses conceitos seriam ampliados e aprofundados, mas são citados muito sumariamente aqui para contextualizar sociologicamente o surgimento do grupo em estudo.
- No âmbito político e econômico, o marxismo contribuía com a confirmação dessa tendência de considerar a religião como um fenômeno obsoleto, “incompatível com as sociedades voltadas para o progresso econômico e social”. (WILLAIME, 2012, p. 145)
- De modo muito consistente com esse contexto, foi em 1848 que Karl Marx e Friedrich Engels publicaram O Manifesto Comunista, propondo um rompimento da dominação burguesa capitalista, para eles apoiada e alimentada pela religião.
- É nessa abordagem que se insere a metáfora da religião como “ópio do povo”, declaração que consta em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1844. (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 23).
- É desse período também a publicação da obra A Origem das Espécies (1859), de Charles Darwin (1809-1882), que influenciou profundamente o ambiente científico e religioso da época, como mais um elemento a afastar o homem da necessidade do divino e a secularizar as igrejas tradicionais. (NORRIS; INGLEHART, 2004, p. 8)
- Paralelamente a esses desenvolvimentos, porém, vários grupos buscavam um retorno aos valores espirituais. (ALBANESE, 2002, p. 19)
- Jean-Paul Williame (2012, p. 26) cita Alexis Tocqueville (1805-1859) inclusive ressaltando “o importante papel exercido pela religião na formação e no desenvolvimento da democracia nesse país [EUA]” (=lembrando que pela fé, usando a religião, os cristãos praticaram genocídio e tomaram as riquezas e propriedades dos índios) , e que ele, Tocqueville, “ficou admirado pela vitalidade religiosa (=capitalista) que se manifestava na sociedade norte-americana, que vai de encontro aos que afirmavam que o advento da sociedade democrática moderna conduziria ao recuo da religião”.
- De fato, o século XIX foi palco do surgimento de vários grupos religiosos, que com o tempo se consolidaram como religiões, no que, na opinião do historiador William G. Mcloughlin, constituiriam ciclos de avivamento.
- Na opinião desse autor, o que ele chamou de “Terceiro Grande Avivamento” (1890-1920), foi uma resposta racional ao cenário evolucionista da época. (MCGOWAN, 1980, p. 114) (=vaidade e misticismo misturado com preconceitos, intolerâncias e prepotências do cristianismo)
- Assim, vários grupos com interesses religiosos comuns são formados nessa época, como os Adventistas do Sétimo Dia, a Igreja de Jesus Cristo do Santos dos Últimos Dias, a Igreja de Cristo Cientista, e as Testemunhas de Jeová, entre outras.
- Um dos temas de particular interesse desses grupos eram as profecias messiânicas referentes à volta de Cristo e ao fim do mundo.
- Assim,
... (1) William Miller (1782- 1849), pioneiro do desenvolvimento adventista, com base no livro bíblico de Daniel, previu o retorno de Cristo para 1843, corrigindo-o depois 1844 (COLLINS, 2005, p. 412),
... (2) o teólogo alemão J. A. Bengel para 1836,
... (3) Edward Irving (1792-1834), baseado em cujos ensinos fundou-se posteriormente a Igreja Católica Apostólica, para 1864,
... (4) e menonitas russos para 1889 e depois para 1891,
... (5) e as Testemunhas de Jeová para 1874. (TRATADOS, 1993, p. 40) (BARBOUR; RUSSELL, 1877, p. 125)
1 A Igreja Congregacional tem suas origens em grupos de puritanos e pioneiros que no início do século XV vieram da Inglaterra para os Estados Unidos em busca de liberdade religiosa. Seus fundamentos estabelecem que cada igreja local, ou congregação, é autônoma e completa, e que cada cristão possui plena liberdade de consciência para interpretar o evangelho. (MAURO, 2014)
Figura 1 – Charles Taze Russel e sua esposa Maria, com quem se casou em 1879. (ZYDEK, 2010, p. 235)
2 Mateus 24:3. Este versículo dá inicio a uma longa profecia de Jesus sobre o que assinalaria o fim do mundo, em resposta à uma pergunta de seus discípulos. Diz: “E estando ele sentado no Monte das Oliveiras, chegaram-se a ele os seus discípulos em particular, dizendo: Declara-nos quando serão essas coisas, e que sinal haverá da tua vinda e do fim do mundo.” Grifo acrescentado. Versão João Ferreira de Almeida Revisada Fiel.3 Tempos dos gentios. Termo usado por Cristo na mesma profecia sobre o fim do mundo, conforme consta no evangelho de Lucas 21:24: “E cairão ao fio da espada, e para todas as nações serão levados cativos; e Jerusalém será pisada pelos gentios, até que os tempos dos gentios se completem.” Versão João Ferreira de Almeida Revisada Fiel. São várias as interpretações para o termo, mas, para as Testemunhas de Jeová, ele se refere ao período que vai desde a destruição do templo em Jerusalém por Babilônia e a destituição do último rei judeu ungido, Zedequias (em 607 AEC, conforme defendido por elas), até a volta invisível de Cristo. (TRATADOS, 2000b, p. 688)
Figura 2 – The Herald of Morning Figura 3 – Zion’s Watchtower
4 Barbour publicou um artigo no qual negava que a morte de Jesus servia também como resgate expiratório do pecado da raça humana, ideia que era defendida por Russell. (TRATADOS, 1993, p. 47)
1.2 Desenvolvimento e conformação até a posse do Partido Nazista
Russell havia deixado muito para cada indivíduo quanto à forma como devíamos cumprir nossas responsabilidades. Quando éramos enviados como oradores para visitar as congregações, tínhamos o nosso próprio modo de fazê-lo. Nós selecionamos nossos próprios assuntos para as palestras e, como resultado, havia uma considerável confusão quanto ao que havia sido dito. Rutherford queria unificar o trabalho de pregação e, em vez de cada indivíduo dar a sua própria opinião e dizer o que ele achava que era certo e fazer o que estava em sua própria mente, gradualmente Rutherford próprio começou a ser o principal porta-voz da organização. Essa foi a maneira que ele concebeu para que a mensagem fosse transmitida sem contradições. (MACMILLAN, 1957, p. 152) Tradução do autor.
Figura 4 - Joseph Franklin Rutherford, em 1910. (MACMILLAN, 1957, p. 124)
5 Esse discurso foi publicado e distribuído também na forma de folheto.
6 Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada, 2015. Produzida e distribuída pelas Testemunhas de Jeová.
“Aqueles que compõem “a Sociedade”, dentro do significado deste termo como definido aqui, e que são desta forma os ungidos por Deus na terra, cuja companhia de cristãos é chamada também de Estudantes Internacionais da Bíblia 7 , enquanto ainda em carne devem ser governados pela lei de Deus. Suas leis são expressas na sua Palavra e portanto são as leis dos Estudantes da Bíblia, e estas leis proíbem de modo absoluto tais ungidos de envolver-se em guerras com armas carnais. Por esta razão os Estudantes da Bíblia são mal entendidos pelas autoridades deste mundo. Eles [os Estudantes] não têm interesse em interferir com os governos do mundo ou as ações dos mesmos, nem podem quebrar voluntariamente a lei de Deus. Não é prerrogativa dos Estudantes da Bíblia como Cristãos dizer que as nações ou pessoas na terra não devem envolver-se em guerra. Este assunto não é deles. Seria errado eles tentarem interferir com o engajamento das nações em guerras, ou alistarem homens para envolver-se numa guerra. No que diz respeito às ações de uma nação em selecionar e treinar um exército, nenhum cristão tem o direito de interferir. É um assunto que a própria nação deve determinar.” (SOCIETY, 1929b, p. 183), tradução e grifo do autor.8
7 Antes de adotarem o nome Testemunhas de Jeová, em 1933, o grupo era chamado de Estudantes Internacionais da Bíblia, ou, Estudantes da Bíblia.8 Em 1962, a compreensão de que as “autoridades superiores” referem-se aos governos seculares foi retomada, e é a explicação atual de Romanos 13:1. (TRATADOS, 2006a, p. 29)
Todas as organizações religiosas na terra são constituídas e conduzidas por homens que estão sob influência nociva e são governadas pelo grande inimigo Satanás, o Diabo; isso é verdade, quer eles se deem conta ou não, porque a Bíblia assim o afirma... Há duas organizações em existência, a saber: a organização do Deus Todo-poderoso, que é completamente correta, pura e verdadeira, e a organização do Diabo, um deus de imitação, que é profana, iníqua e inteiramente falsa. As pessoas na terra estão sujeitas ou a uma ou a outra dessas duas organizações. (RUTHERFORD, 1937, p. 72), tradução do autor.
“O canto de louvor ao Altíssimo anuncia que seu Reino é a única esperança para o mundo e que Cristo reinará agora em justiça e destruirá toda a hipocrisia e iniquidade. Este canto perturba a velha “meretriz”10, e ela toca sua harpa com todo seu poder e energia e usa todo seu poder e influência para tirar os harpistas do Senhor do caminho. As canções desta prostituta anunciam que o sistema Católico Romano é a esperança para o mundo; e ao passo que ela canta, fanáticos como Hitler e Mussolini aplaudem e dão seu suporte. A perseguição dela às Testemunhas de Jeová é prova conclusiva desta afirmação.” (RUTHERFORD, 1937, p. 275), tradução do autor.
9 Originalmente “testemunhas de Jeová”, com o “t” inicial em minúscula. A partir de 1976 as publicações das Testemunhas de Jeová passaram a usar o “T” maiúsculo.10 Referência à meretriz que aparece no livro bíblico de Apocalipse, entendida como símbolo do conjunto de todas as religiões “falsas” do mundo. Apocalipse 17:5 – “Na sua testa estava escrito um nome, um mistério: “Babilônia, a Grande, a mãe das prostitutas e das coisas repugnantes da terra.”” Tradução no Novo Mundo da Bíblia Sagrada, 2015 (TRATADOS, 1972, p. 154)
1.3 Doutrinas fundamentais das Testemunhas de Jeová
11 Esse foi um elemento tangencial de confronto também, já que as Testemunhas de Jeová não fazem distinção de importância entre o Velho e o Novo Testamento, que chamam, respectivamente de Escrituras Hebraicas e Escrituras Gregas. A valorização das escrituras hebraicas foi usada pelo Partido Nazista para declará-los simpatizantes dos judeus.12 “Voluntários Desejados!” era o título de um artigo na Torre de Vigia de Sião de 15 de abril de 1899. Propunha novo método de disseminação das verdades bíblicas, a saber, a distribuição de folhetos em público, em princípio na saída das igrejas, e, com o tempo, de casa em casa. Na primeira ação desse tipo 300.000 exemplares de um novo folheto intitulado “A Bíblia vs. a Evolução” foram distribuídos. Eram entregues às pessoas à medida que saíam das igrejas no domingo. (TRATADOS, 1976, pg. 45)13 A partir de 1920, cada Testemunha de Jeová deve reportar quantas horas gasta na atividade de pregação. (SOCIETY, 1976, p. 124)
14 Apesar da leitura bastante literal que fazem do livro de Gênesis, e acreditarem na Criação e não na Evolução, as Testemunhas de Jeová não são Criacionistas. Por exemplo, defendem que os dias criativos não são intervalos fixos de 24 horas, mas períodos de tempo necessários para a realização de um grande ciclo de acontecimentos. Esses períodos podem ter sido de milhares ou milhões de anos. (TRATADOS, A. T. DE V. DE B. E, 2010, p. 24)15 As Testemunhas de Jeová não são trinitaristas. Assim creem que Deus e Jesus Cristo são pessoas diferentes e que o espírito santo não é uma pessoa, mas a manifestação do poder de Deus (sua ‘força ativa’). (TRATADOS, 2000a, p. 689)
(TRATADOS, S. T. DE V. DE B. E, 2010b, p. 25). Assim:Basicamente, Satanás deu a entender que a humanidade seria mais felizse seguisse um caminho independente de Deus. Em vez de apoiar ajustiça da soberania divina, Adão deu ouvidos à sua esposa e juntou-se a ela em comer do fruto proibido. Assim, Adão perdeu sua condiçãoperfeita perante Jeová e nos colocou sob o jugo cruel do pecado e damorte. E a humanidade ficou sujeita a uma soberania rival, a de Satanás,“o deus deste mundo”. — 2 Cor. 4:4, Pastoral; Rom. 7:14. (TRATADOS, S.T. DE V. DE B. E, 2010a, pp. 8–12)
16 As Testemunhas de Jeová creem que a referência ao fruto é literal. Não atribuem a ele um símbolo para as relações sexuais, já que não faria sentido com base na ordem de que ‘tivessem filhos e enchessem a terra’.(TRATADOS, 2000b, p. 202)17 Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada, 2015.18 Eventualmente, outros anjos decidiram juntar-se ao Diabo, e se tornaram os demônios. (TRATADOS, 2000a, p. 680)
O visível derramamento do espírito santo sobre Jesus o identificou comoo Ungido, que significa Messias, ou Cristo. (João 1:33) Finalmente haviaaparecido o prometido “descendente”! Diante de João, o Batizador,estava aquele cujo calcanhar seria machucado por Satanás e que, porsua vez, machucaria a cabeça desse arqui-inimigo de Jeová e de Suasoberania. (Gênesis 3:15) (TRATADOS, 2007b, p. 26 a 28)
19 Conforme explicam, embora não tenham literalmente morrido ‘no dia’ em que comeram, foi nesse dia que receberam a sentença de morte, estando portanto, para os fins do julgamento, mortos. (TRATADOS, 1983, p. 56)
A rebelião no Éden levantou uma questão que afetou todas as criaturas de Deus: será que Jeová Deus exerce domínio sobre suas criaturas domodo correto? Para resolver essa questão fundamental, Jeová decidiuque um filho espiritual perfeito teria de vir à Terra. A missão desse filhonão poderia ser mais importante — dar a vida para vindicar a soberaniade Jeová e servir como resgate para a salvação da humanidade. Porpermanecer fiel até a morte, esse filho escolhido tornaria possívelresolver todos os problemas que surgiram com a rebelião de Satanás.(Hebreus 2:14, 15; 1 João 3:8) (TRATADOS, 2007a, p. 15)
Além disso, o Reino está estruturado para fazer com que ‘se realize a vontade de Deus, como no Céu, assim também na Terra’. E qual é essa vontade? É restabelecer o relacionamento entre Deus e a humanidade, que Adão perdeu. O Reino servirá também para realizar o propósito do Soberano Universal, Jeová, de estabelecer um paraíso na Terra no qual pessoas boas poderão viver para sempre. De fato, o Reino de Deus vai desfazer todos os danos causados pelo pecado original e tornará realidade o amoroso propósito de Deus para com a Terra. (1 João 3:8) (TRATADOS, 2006b, p. 4)
20 Vale ressaltar que, conforme o evangelista, nessa ocasião Jesus havia passado um grande tempo no deserto, o que faz supor que deveria estar com fome.
21 No vocabulário das Testemunhas de Jeová, esses regentes são chamados de “Ungidos”. A pertinência a esse grupo é de caráter íntimo e individual. Conquanto continuem fiéis em sua vida na Terra, serão recebidos no céu para uma existência espiritual, na qual trabalharão com “Reis e Sacerdotes” ao lado de Cristo. Os demais, cujo número é indeterminado, são chamados de “Grande Multidão e permanecerão na Terra, como humanos no paraíso restaurado.
22 Ou Har-Magedom
Numa oração a Deus, Jesus disse a respeito de seus discípulos: “Tenho lhes dado a tua palavra, mas o mundo os tem odiado, porque não fazem parte do mundo, assim como eu não faço parte do mundo. Solicito-te, não que os tires do mundo, mas que vigies sobre eles, por causa do iníquo. Não fazem parte do mundo, assim como eu não faço parte do mundo.” (João 17:14-16) Talvez estejamos determinados a manter-nos separados do mundo em assuntos maiores, como a neutralidade, costumes e feriados religiosos, e imoralidade. E em assuntos menores? Será que, mesmo sem perceber, nos deixamos influenciar pelos modos do mundo? Por exemplo, se não tivermos cuidado, poderemos facilmente começar a nos vestir de modo indigno e inapropriado. (TRATADOS, 2005, p. 29) Grifo acrescentado.
23 Conforme justificam, a saudação Heil Hitler (Salve Hitler), implica em atribuir a Hitler o papel de Salvador, que reservam exclusivamente a Cristo. (TRATADOS, 1993, p. 196)
Mundo: Este é o termo costumeiro usado na tradução do termo grego kó·smos em todas as ocorrências nas Escrituras Gregas Cristãs, exceto em 1 Pedro 3:3, onde é vertido “adorno”. “Mundo” pode significar (1) a humanidade como um todo, à parte da sua condição moral ou modo de vida, (2) a estrutura das circunstâncias humanas em que a pessoa nasce e em que vive (e, neste sentido, é às vezes bastante similar ao termo grego ai·ón, “sistema de coisas”), ou (3) as massas da humanidade à parte dos servos aprovados de Jeová. (TRATADOS, 2000b, p. 38)
Estes textos [entre eles João 17:14-16, nota do autor] não se referem simplesmente à humanidade, da qual os discípulos de Jesus faziam parte, mas a toda a sociedade humana organizada fora da verdadeira congregação cristã. Grifo acrescentado.
Como devemos considerar os governantes seculares no mundo? Paulo respondeu a essa pergunta ao escrever: “Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores, pois não há autoridade exceto por Deus; as autoridades existentes acham-se colocadas por Deus nas suas posições relativas.” (Romanos 13:1, 2) Os humanos ocupam posições “relativas” de autoridade (superiores ou inferiores com relação a uns e a outros, mas sempre inferiores a Jeová), porque o Todo-Poderoso lhes permite isso. O cristão sujeita-se à autoridade secular por ser isso um aspecto da sua obediência a Jeová. (TRATADOS, 2002, p. 17)
2. O contexto religioso na Alemanha nazista
- Desde a reforma protestante iniciada por Martinho Lutero (1483–1546) em 1517, dois grupos religiosos majoritários compunham a população alemã: católicos e protestantes.
- Durante a década de 1930, dos aproximadamente 65.000.000 a 67.000.000 de habitantes, a grande maioria pertencia a um desses grupos, sendo que cerca de 40.000.000 professavam-se protestantes, divididos em 28 igrejas provinciais, e 21.000.000 católicos.
- Cerca de 5% da população dividia-se entre os que não tinham nenhuma filiação religiosa, sendo 3,5% deístas, e 1% ateus. (EVANS, 2013, p. 626)
- Aproximadamente 620.000 (menos de 1%), eram membros de religiões menores, nos seguintes valores aproximados:
a Nova Igreja Apostólica (250.000),
os Adventistas do Sétimo Dia (36.000),
as Testemunhas de Jeová (24.000),
a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (16.500)
e a Primeira Igreja de Cristo, Cientista. - Os demais dividiam-se em membros de igrejas reunidas sob a União das Igrejas Livres da Alemanha, entre as quais os batistas e os metodistas. (KING, 1982, p. b)
- A população de judeus era de cerca de 505.000 pessoas. (MUSEUM, 2015, p. 1)
- Antes de aprofundar, porém, uma análise da ideologia nazista como religião, e da relação dele com as religiões, convém um breve retrospecto dos fatos que o conduziram ao poder, com ênfase em elementos que serão retomados na análise do conflito.
- Sob a república de Weimar (1919–1933), as religiões tinham proteção legal na Alemanha, e as religiões minoritárias viviam um período de considerável crescimento.
- Não apenas tinham o direito assegurado de reunir-se e exercer seus serviços religiosos, como também eram registradas formalmente como entidade caritativas, e, como tais, isentas de alguns impostos.
- Além disso, caso seus membros fossem tratados de maneira hostil por quaisquer grupos, tinham o direito à proteção das autoridades públicas e normalmente o recebiam. Ademais, o artigo 114 da República de Weimar garantia aos Deístas.
- Gottgläubigers: termo nazista para aqueles que rompiam suas filiações religiosas, mas continuavam acreditando em Jesus e em Deus.
- Diferente do comunismo, o nazismo não impunha o ateísmo.
- cidadãos presos, independente de sua religião, que fossem julgados dentro de vinte e quatro horas. (KING, 1982, p. 23)
- O poder exercido pela República de Weimar daria lugar a um partido político que se organizava desde o final da Primeira Guerra Mundial, o Partido dos Trabalhadores Alemães.
- Adolf Hitler, nascido na Áustria e que havia sido combatente na Primeira Guerra Mundial, associou-se ao partido e, em 1920, era o responsável por sua propaganda.
- Numa noite decisiva para o partido, 24 de fevereiro de 1920, ele atuou como orador, e, conforme sua própria descrição feita posteriormente:
Comecei, então, a expor o programa [do Partido], ponto por ponto. Depois que expliquei as vinte e cinco teses do nosso movimento, senti que tinha diante de mim uma massa popular conquistada às novas ideias, a uma nova crença e animada de uma nova força de vontade. A proporção que, depois de quase quatro horas de discussões, a sala começou a esvaziar-se, senti que as bases do movimento estavam lançadas no coração do povo. Estava ateado o fogo de um movimento que, com o auxílio da espada, haveria de restaurar a liberdade e a vida da nação alemã. (HITLER, 1941, p. 508) Tradução do autor.
- O programa mencionado compunha-se de 25 teses que resumiam as propostas do Partido dos Trabalhadores.
- Com apenas algumas poucas manifestações em contrário, o programa foi dado como adotado (e “inalterável” como Hitler diria mais à frente)
- em 1o de abril de 1920, mesmo dia em que o partido passou a ser nomeado Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães.
- Conforme pondera William L. Shirer, o programa era uma falácia, um engodo, e foi ridicularizado por vários autores que escreveram sobre a Alemanha.
- As propostas eram totalmente genéricas e dúbias, ficando sujeitas a várias possíveis interpretações.
- Apesar disso, junto com os princípios enunciados do Mein Kampf, obra que Hitler escreveria mais adiante, constituiriam uma justificativa ideológica para várias atrocidades que seriam cometidas pelo partido nazista no futuro próximo. (SHIRER, 1962, p. 75)
- No contexto desta pesquisa, é importante destacar a tese 24, que dizia: Exigimos liberdade para todas as denominações religiosas no Estado, desde que não ameacem a sua existência e não ofendem os sentimentos morais da raça alemã.
- O Partido, como tal, apoia o cristianismo positivo, mas não se compromete a nenhuma denominação particular.
- Combate o espírito judaico-materialista dentro e fora de nós, e está convencido de que o nosso país pode alcançar a saúde permanente apenas a partir de dentro, com base no princípio: o interesse comum precede o interesse individual. (HISTORICAL MUSEUM, 1920, p. Programme of NSDAP) Tradução do autor.
- É possível observar que o texto é bastante ambíguo, e não representava, de fato, nenhuma garantia explícita de liberdade.
- Ao contrário, ele contém a essência do que em breve seriam algumas das justificativas para os esforços de supressão para vários grupos religiosos – bastaria caracterizá-los como uma ‘ameaça ao Partido’, ou ‘ofensivos aos sentimentos morais da raça alemã’, ambos critérios totalmente subjetivos.
- Daria a Hitler, na verdade, as condições para que ele adotasse qualquer atitude que servisse aos seus propósitos políticos imediatos.
- Apesar disso, parecia não haver motivos questionar essa ambiguidade, e praticamente ninguém o fez. (CONWAY, 1968, p. 8)
- Com uma oratória convencedora, e uma forte determinação de dar ao partido uma participação decisiva na Alemanha, Hitler trabalhou muito para conseguir fundos, vencer rivalidades internas e estabelecer-se como o líder do partido, o que de fato aconteceu, em julho de 1921.
- Associaram-se a ele também nessa época alguns que tiveram considerável influência em sua carreira política, como Rudolf Hess, amigo íntimo e secretário, Alfred Rosenberg, aclamado como o “líder intelectual” do partido, Hermann Göring, que viria a ser o comandante-chefe da força aérea alemã e Ernest Röhm, que seria o chefe da milícia armada do partido, a SA (abreviação de Sturmabteilung (Destacamento Tempestade), cujos membros eram também conhecidos por camisas-pardas.
- Nesta mesma época, as coisas não iam bem para República de Weimar. Em abril de 1921 os Aliados apresentaram a exigência de reparação cujo valor atualizado para 2015 seria de US$ 442 bilhões; o Marco alemão, cotado anteriormente a quatro por dólar, chegaria em pouco tempo a quatrocentos por dólar. (SHIRER, 1962, p. 91)
- Seguindo seu plano de alcançar o poder, e favorecido pela desorganização no governo e pela situação econômica adversa, Hitler e seus principais apoiadores pretenderam dar início a uma revolução em 8 de novembro de 1923, no que veio a ser conhecido como o Putsch (golpe) da Cervejaria, em Munique. As cervejarias eram locais comuns de reuniões de pessoas para socialização, discussões políticas, etc. A cervejaria em questão é a Bürgerbräukeller, em Munique, que ganhou forte conexão com o partido nazista.
- O objetivo era tomar o poder do governo Bávaro, mas o golpe fracassou e Hitler foi condenado por traição, sendo sua pena prisão de quatro anos.
- Longe de prejudicá-lo, porém, o golpe serviu para dar a Hitler a projeção nacional que ele jamais tivera até então, como herói e patriota – mesmo à custa de dezesseis apoiadores mortos no embate com a polícia, aos quais ele abandonou à própria sorte. (SHIRER, 1962, p. 134)
- A prisão que se seguiu, na qual ele seria tratado com honra, foi também providencial, pois proveu-lhe o tempo para ler, refletir nas causas de seu fracasso, receber visitas, e, mais importante, para escrever o livro no qual ele estabeleceu e ampliou seus ideais de governo, o Mein Kampf, publicado em 1925. O primeiro volume. O segundo seria publicado em 1926.
- Apesar do trabalho de edição, a obra era muito pouco literária, desconexa e incoerente – Hitler era um grande orador, mas um péssimo escritor. (EVANS, 2010, p. 254)
- O historiador William Shirer afirma que mesmo figuras importantes do partido admitiram não ter conseguido “chegar ao fim de suas 782 empoladas páginas”. (SHIRER, 1962, p. 133)
- Entretanto, suas principais ideias estavam claramente expostas nele, a saber: os judeus eram inimigos jurados da nação alemã, a superioridade ariana era inquestionável e o estado soviético deveria ser anexado ao alemão, entre outras.
- Com o avanço do nazismo, o Mein Kampf só perdeu para a Bíblia em termos de distribuição, e tornou Hitler milionário. Apenas durante 1933, foram vendidos um milhão de exemplares. Não possuir um exemplar dele era praticamente um ato de traição, e era um presente de casamento e de formatura praticamente obrigatório. Muito distribuído, mas muito pouco lido.
- E, conforme afirma Shirer, ‘se mais alemães não nazistas o tivessem lido antes de 1933, e se os estadistas de todo o mundo tivessem dado atenção a ele, tanto a Alemanha quanto os Aliados poderiam ter sido poupados da catástrofe’. (SHIRER, 1962, p. 134)
- Hitler havia sido condenado a quatro anos de prisão, porém saiu cerca nove meses depois, em 20 de dezembro de 1924.
- O partido nazista estava desestruturado, mas, com a ajuda de Joseph Goebbels, que se tornou um orador quase tão persuasivo como o próprio Hitler, e com uma capacidade literária que ele soube usar com a imprensa, entre 1927 e 1928 o partido voltou a consolidar-se e atrair filiados em várias regiões da Alemanha, inclusive nas rurais. (SHIRER, 1962, p. 200)
- Em julho de 1929 assumiu sua primeira municipalidade, com a cidade de Coburg.
- A quase onipresença da suástica nos eventos, as campanhas e congressos bem organizados, com a ostensiva presença dos camisas-pardas, os discursos inflamados, e, principalmente, a forte centralização na figura de Hitler, inclusive com adoção da saudação Heil Hitler (com ou sem sua presença), transmitiam a imagem de um partido com uma força e organização formidáveis. (EVANS, 2010, p. 271)
- Hitler soube aproveitar bem esse período de vitórias e exposição do Partido.
- Tanto a sede como sua casa foram situadas em propriedades de grande luxo, em Munique. Igualmente, procedeu uma série de reformulações na direção do partido, entre as quais a designação de Joseph Goebbels como o chefe da propaganda.
- Mais de mil manifestações foram organizadas antes das eleições de 1930. A atividade intensa do Partido não foi a única razão do rápido aumento de sua aceitação pela população.
- O pano de fundo da crise financeira mundial de 1929 foi bastante bem aproveitado por Hitler e a dirigentes do Partido.
- A quebra da Bolsa de Nova York em 24 de outubro de 1929 teve um profundo impacto econômico e psicológico na Alemanha, há muito ressentida com os termos estabelecidos no Tratado de Versalhes.
- O Tratado de Versalhes (1919) pôs formalmente fim à Primeira Guerra Mundial, e estabeleceu uma série de sanções à Alemanha, incluindo uma dívida financeira altíssima e perda de territórios, o que causou choque e humilhação à população alemã.
- A barreira de três milhões de desempregados foi ultrapassada, e em 1932 já eram mais de cinco milhões.
- O sentimento geral era de desânimo, agravado pelas falências e suicídios recorrentes.
- Na análise do biógrafo Joachim Fest, o que fez Hitler sobressair-se aos adversários e usar a seu favor este cenário de caos, foi apelar para além da necessidade financeira imediata dos cidadãos.
- Segundo Fest (2005a, p. 295), A habilidade de Hitler consistiu justamente em se situar, nos seus ruidosos apelos, além das contradições econômicas e utilizar sobretudo os interesses materiais para se distinguir eficazmente de seus adversários.
- “Não prometo felicidade e prosperidade,” bradava ele às vezes. “A única coisa que posso dizer é que ... não temos o direito de exclamar ‘Alemanha’ quando milhões de nós estão desempregados e nem ao menos têm o que vestir”.
- Sua superioridade provinha também do fato de ter compreendido que a atitude no homem não obedece exclusivamente a motivos econômicos.
- Ele se baseava sobretudo na necessidade de ter uma razão pessoal para existir. Grifo acrescentado.
- Esse tema será retomado no próximo item, mas é possível identificar desde já nessa visão de Hitler os elementos característicos de uma religião civil, à medida em que o Estado é que proporcionaria aos cidadãos as ‘razões pessoais para existência’.
- É possível identificar aqui a proposição de Jean-Jacques Rousseau sobre a religião civil, que seria segundo ele uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos compete ao soberano fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom cidadão ou súdito fiel. (ROUSSEAU, 1973, p. 152)
- Essa posição, algo incipiente a essa altura do desenvolvimento do estado nazista, ganharia proporções de enormes consequências no confronto com grupos divergentes, em particular aqui, às Testemunhas de Jeová.
- No cenário de caos disparado pela quebra da bolsa de valores de Nova York, outros políticos tomaram decisões que voluntariamente ou não contribuiriam para a ascensão do partido nazista.
- O então chanceler Hermann Muller renunciou e foi substituído por Heinrich Brüning em março de 1930, que decretou estado de emergência e convenceu o presidente Hindenburg a dissolver o Parlamento e marcar novas eleições.
- O responsável pela propaganda do partido nazista, Joseph Goebbels, soube tirar proveito desse fato, e organizou uma campanha massiva. Hitler fez 20 grandes discursos em seis semanas.
- O resultado foi a conquista de 18,3% dos votos e 107 cadeiras no Parlamento, contra os apenas 2,6% e 12 cadeiras em 1928.
- A maior parte dos eleitores eram de classe média baixa, a maioria protestantes, mas o apoio de gente da classe mais alta se tornou expressivo.
- Em 1932 ocorreram as eleições para presidente, e Hitler, que era de nacionalidade austríaca mas obtivera a cidadania alemã, candidatou-se.
- Os candidatos eram: Hindenburg, concorrendo à reeleição, o comunista Ernst Thälmann e Hitler.
- No segundo turno Hindenburg foi reeleito com 53% dos votos, mas Hitler conquistou 13 milhões de votos, 2 milhões a mais que no primeiro turno.
- O chanceler Brüning tentou conter o avanço do partido nazista convencendo o presidente eleito a proscrever a SA.
- Entretanto, Hitler antecipou-se a essa ação, e selou um pacto com o general Kurt von Schleicher no qual Schleicher não executaria a ordem da proscrição da SA, e Hitler daria o apoio dos nazistas para que Schleicher substituísse Brüning como chanceler.
- Através de várias articulações e intrigas, Schleicher conseguiu que o presidente Hindenburg nomeasse Franz von Papen, seu amigo pessoal, como chanceler – a quem Schleicher acreditava poder controlar por trás da cena.
- Von Papen e Schleicher mantiveram a promessa a Hitler de suspender o banimento da SA, na esperança de que isso traria para eles o apoio dos nazistas, e até da própria SA caso necessitassem, pois as tropas oficiais eram reduzidas, por conta do Tratado de Versalhes.
- Porém, essa manobra “mostrou ser um erro de cálculo desastroso”. (EVANS, 2010, p. 354) O partido nazista ganhava força.
- As fileiras da SA só faziam engrossar, atraindo as hordas de desempregados, e logo chegariam a mais de quatrocentos mil. (BARNETT, 1989, p. 148)
- Suas manifestações públicas eram cada vez maiores e mais violentas.
- Nas eleições de julho de 1932, o partido nazista ganhou 37,4% dos votos, e conquistou 230 cadeiras no Parlamento – de longe o maior partido.
- O único partido que oferecia certa relevância era o partido comunista, que voltou a ganhar força em 1932.
- Schleicher chegou a assumir como chanceler, em lugar de Von Papen, mas permaneceu apenas dois meses, e teve que renunciar, vítima de sua própria rede de intrigas.
- Assim, o presidente Hindenburg acreditou que acomodaria as coisas nomeando Hitler como chanceler para impedir o avanço comunista, e colocando Von Papen como vice-chanceler, para manter um certo controle sobre a chancelaria.
- Conforme demonstrado pelo que aconteceria, esta estratégia não funcionou. (SZKLARZ, 2014, p. 78)
- Hitler foi empossado como chanceler em 30 de janeiro de 1933, dando início ao Terceiro Reich (império) Alemão.
- Na história da Alemanha, o termo Primeiro Reich é usado para referir-se ao Sacro Império Romano Germânico, uma união de vários territórios na Europa Central, aproximadamente de 800 DC até 1806, durante as Guerras Napoleônicas, quando Francisco II abdicou e dissolveu o império.
- O Segundo Reich se refere ao período iniciado com a reunificação dos estados germânicos em 1871, articulada por Bismark, e tendo Guilherme da Prússia como Imperador (kaiser).
- Terminou com a derrota da Alemanha na Primeira Guerra, formalmente na assinatura do Tratado de Versalhes, em 1919.
- Para evitar o mesmo erro que cometera no Putsch da Cervejaria, ele queria preservar o apoio do Exército, dos industriais e das Igrejas.
- Ademais, seus passos eram, até certo ponto, limitados pelo Parlamento (Riechstag).
- Porém, Hitler mais uma vez soube tirar proveito de um acontecimento logo após sua posse: em 27 de fevereiro, o parlamento foi incendiado, supostamente por um comunista, Marinus van de Lubbe, que confessou sob tortura.
- Quer ele tenha sido o responsável ou não, a culpa recaiu sobre os comunistas, e Hitler convenceu o presidente Hindenburg a assinar o Decreto de Emergência, que suprimia os direitos individuais dos cidadãos.
- Qualquer cidadão sob suspeita poderia ser imediatamente colocado sob custódia. Os principais alvos eram inicialmente os comunistas, os socialdemocratas e as Testemunhas de Jeová. (SZKLARZ, 2014, p. 86)
- Os bandidos, alcoólatras e outros impopulares eram tratados com truculência, e os opositores políticos perdiam seus empregos e eram presos.
- Com os empregos tirados também dos judeus, o desemprego diminuiu entre os cidadãos alemães, e, de modo geral, a reação ao novo partido era positiva.
- Mas o partido nazista ainda não tinha a maioria de dois terços de cadeiras no Parlamento. Isso só aconteceu graças ao acordo de Hitler com o Partido do Centro (Católico), segundo o qual Hitler assinaria um tratado com o Vaticano, garantindo a integridade e preservação dos direitos e liberdade da Igreja Católica na Alemanha.
- Esse tratado, que será discutido em mais detalhes no item 2.4, foi assinado em 20 de julho entre Hitler e o secretário de Estado do Vaticano, Eugenio Pacelli, futuro Papa Pio XII.
- Este tratado não só eliminou o último obstáculo a Hitler no Parlamento, pois o partido comunista já havia sido banido após o incêndio do Parlamento, como resultou no silêncio das instituições católicas à onda de terror seletivo que já se instalara na Alemanha, além de, naturalmente, conferir uma aura de poder moral ao nazismo. (SZKLARZ, 2014, p. 90)
Hitler venceu as eleições em março, e consolidou seu poder totalitário em junho de 1934, com a execução de vários oficiais que não eram de sua confiança, no episódio que passou para a história com o nome de Noite das Facas Longas, em 30 de junho. O ex chanceler Schleicher foi executado, assim como Ernst Röhm, ex-chefe da SA, com outras dezenas de oficiais. O presidente Hindenburg já apresentava a saúde extremamente abalada, e, na prática, tinha pouquíssima influência nos acontecimentos. Hitler, passando por cima de prescrições legais, fez promulgar uma lei pela qual as funções de Presidente do Reich seriam acrescentadas ao “Führer (condutor) e chanceler do Reich”. (FEST, 2005b, p. 559) Com o falecimento de Hindenburg, em 2 de agosto de 1934, todo o poder do Estado estava nas mãos de Hitler.
2.2 O Nazismo como religião
Apesar de Hitler ter jurado defender a constituição de Weimar ao ser empossado Chanceler em 30 de janeiro de 1933, inclusive a tese 24 do programa de seu Partido, a política do Terceiro Reich em relação ao relacionamento do Estado com a religião organizada não era clara. Hitler nasceu e cresceu num lar católico, foi educado numa escola católica, mas questionava os princípios do cristianismo tradicional, que para ele haviam sido corrompidos, em favor de ideias que considerava mais modernas e “positivas”, para usar o mesmo termo da tese 24.
Conforme ele defendeu no seu livro Mein Kampf, o cristianismo havia sido adulterado pelo “chamado Partido Cristão” que, segundo ele, “se limitava a mendigar votos dos judeus nas eleições, procurando ajeitar combinações políticas com partidos de judeus ateístas e tudo isso em detrimento do próprio caráter nacional”. Para ele, o verdadeiro cristianismo não era de conciliação, mas de combate.
“A grandeza do Cristianismo não está em qualquer tentativa para
reconciliar-se com as opiniões semelhantes da filosofia dos antigos, mas
na inexorável e fanática proclamação e defesa das suas próprias
doutrinas.(...) O cristianismo não se satisfez em erigir os seus altares,
mas viu-se na contingência de proceder à destruição dos altares dos
pagãos. Só essa fanática intolerância tornou possível construir aquela fé
adamantina que é a condição essencial de sua existência.” (HITLER,
1941, pp. 293, 333, 421)
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É claro que, de um ponto de vista estritamente político, colocar-se francamente contra o cristianismo num país em que 99% da população professa ser cristã (quer católica, quer protestante), não seria prudente. Conforme analisa o historiador Lawrence Rees, Hitler simplesmente reconhecia a realidade prática do mundo em que ele habitava. Ele precisava do máximo de apoio, não importa se de católicos ou protestantes. Assim, seu relacionamento com o cristianismo, de fato, seu relacionamento com as religiões, era apenas oportunístico. Conforme Rees, “não há evidência de que ele próprio, em sua vida pessoal, tenha jamais expressado qualquer crença nos princípios básicos da igreja cristã”. (REES, 2013, p. 135) Seu proposto “cristianismo positivo” visava, portanto, cumprir a delicada tarefa de apresentá-lo como defensor do cristianismo, e, ao mesmo tempo, dar-lhe a flexibilidade de reprimir quaisquer ações das religiões organizadas que não se conciliasse com sua agenda política. (CONWAY, 1968, p. 140) O cristianismo positivo não visava constituir uma terceira opção, a se juntar (ou opor) ao catolicismo e ao protestantismo. Ao contrário, seu interesse era prover valores ao redor dos quais os dois grupos majoritários, ou outros, pudessem se alinhar, especificamente, a rejeição aos judeus e sua ideologia (incluindo o Antigo Testamento da Bíblia), a superioridade da raça ariana e o patriotismo como elemento catalisador, independente da profissão de fé. (STEIGMANN-GALL, 2003, p. 15)
Além deste teor religioso oportunista, Hitler e seus apoiadores buscavam apoio científico, embora de forma tortuosa, na teoria da evolução, de Charles Darwin, na filosofia de Nietzsche e seu Übermensch (além-homem), e no racismo científico de Houston Stewart Chamberlain e Arthur de Gobineau, todas contribuindo para a idealização da superioridade da raça ariana, peça central na proposta nazista. (EVANS, 2010, p. 89) Assim, conforme ele reiterou várias vezes, o nazismo seria baseado na ciência, e não na fé. Nas suas palavras, “o dogma do cristianismo desaparece perante os avanços da ciência”. (EVANS, 2013, p. 627)
Não apenas a tese 24, mas todas as demais, conforme demostrado pela história subsequente, executados como foram pelo Terceiro Reich, trariam consequências desastrosas para milhões de pessoas, dentro e fora da Alemanha. (SHIRER, 1962, p. 75) Assim, à medida que o partido Nacional Socialista ganhou terreno, as mudanças políticas na Alemanha submeteram todas as religiões a um ambiente completamente novo, no qual, conforme ficou cada vez mais claro, não haveria lugar para uma posição neutra.
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Cada questão, mesmo de natureza pessoal, passou a ser encarada de um ponto de vista político – incluindo até as relações matrimoniais. (EVANS, 2013, p. 621)
Conforme a pesquisadora Christine King “Hitler escreveu muito pouco sobre religião em Mein Kampf e velou suas óbvias suspeitas da Cristandade nas suas declarações sobre o quase místico novo papel da política. Uma ideologia política, ele afirmou, deve provocar uma reação religiosa e prover ‘ideais elevados, como único fundamento da moralidade para as massas’”31. (1982, p. 2) A declaração evidentemente indica seu ponto de vista desfavorável à necessidade das religiões formais. Ele próprio
afirma em sua obra Mein Kampf:
Partidos políticos não têm nada a ver com problemas religiosos,
enquanto esses não são hostis à nação e não corrompam a ética e a
moral de sua própria raça. (...) Para o líder político, as doutrinas e
instituições de sua gente deveriam ser sempre invioláveis, do contrário
ele deveria ser um reformador, se tivesse condições para tal. (HITLER,
1941, p. 150) Tradução do autor.
Essa atitude em relação à religião formal era, de fato, compartilhada por muitos alemães, apesar da manutenção dos ritos e costumes. Nos horrores da Primeira Guerra Mundial, os princípios cristãos pareciam não ter tido nenhum significado, uma vez que supostos irmãos de fé matavam-se mutuamente. O apoio dos líderes religiosos ao nacionalismo em ambos os lados das batalhas pareceu a muitos uma evidência de sua hipocrisia. Além disso “a incapacidade das igrejas cristãs explicarem por que a religião do Príncipe da Paz32 não teve poder para evitar a catástrofe dos anos 1914 a 1918 finalmente destruiu as crenças cristãs no coração da geração que observou seus companheiros de fé morrerem tragicamente, na crença de que estavam defendendo a herança cristã de seu país”. (CONWAY, 1968, p. 2)
Assim, essa falta de clareza no posicionamento do relacionamento do partido com as religiões, bem como sua proposta de um ‘cristianismo positivo’, que, conforme Richard Steigman-Gail (2003, p. 15) tinha a proposta superficial de ‘superar as
31 Tradução do autor
32 Termo bíblico que ocorre em Isaías 9:6, referindo-se a Jesus Cristo, conforme entendido pelas igrejas cristãs. (TRATADOS, 1986, p. 13)
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diferenças confessionais e unir o povo alemão em uma única igreja’, aliado ao vácuo espiritual em que muitos se encontravam, propiciaram um terreno fértil para os ideais nazistas. Embora Hitler não tenha pretendido ser um reformador religioso – de fato, era indiferente a questões teológicas – ele ofereceu além de uma explicação plausível às dificuldades da Alemanha pós-guerra, um possível caminho à retomada dos anteriores tempos de glória, e o fez numa linguagem emocional e semirreligiosa, com elementos atraentes para religiosos e não religiosos. Segundo suas próprias palavras, o nacional socialismo se tornaria mais do que uma alternativa política; seria uma forma de conversão, uma nova fé. (RAUSCHNING, 1939, p. 238)
Algumas ações do Partido materializaram essa pretensão. Até elementos da mitologia teutônica passaram a estar presentes em certas celebrações, atraindo especialmente os mais jovens. Apareceram também sincretizados em celebrações de festas religiosas comemoradas pelas igrejas cristãs. Nos sermões de Natal, por exemplo, eram enfatizadas as práticas dos antigos povos germânicos de se reunirem ao redor de uma árvore, cantarem e trocarem presentes para celebrar o retorno do Sol, depois das longas noites do inverno. Hitler era apontado como aquele que estava trazendo luz sobre a Alemanha, após o ‘inverno’ no qual ela havia permanecido desde o fim a Primeira Guerra Mundial. A ele era atribuído o papel ‘messiânico’ de proteger a Alemanha contra o ateísmo comunista e as práticas corruptas atribuídas aos judeus. (CONWAY, 1968, p. 364)
Os dias santos incluíam a comemoração do aniversário do Führer além do que casamentos e batizados nazistas substituíam os correspondentes religiosos. (Figuras 5, 6 e 7) Entre os documentos particulares de Himmler foram encontrados fotos de um batismo do filho de um oficial da SS, com uma descrição da cerimônia. A sala decorada com a bandeira nazista, bétulas e candelabros. Ao centro, um altar com a foto emoldurada de Hitler e uma cópia do Mein Kampf. O cenário era complementado pela presença de três homens da SS, o que ficava ao centro portando uma bandeira. Uma cerimônia fúnebre nazista também foi idealizada, o que causou não poucos conflitos quando jovens membros faleciam, especialmente em cidades menores e mais conservadoras, entre os pais, o clero e os oficiais da SS, quanto a quem determinaria como seria celebrada a cerimônia. (CONWAY, 1968, p. 154) Sob o comando de Himmler, a SS concebeu também sua nova forma de casamento, onde estavam presentes runas,
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uma tigela de fogo, símbolos do Sol, tendo ao fundo a música de Richard Wagner, assim como os batismos e altares nazistas (EVANS, 2013, p. 294)
Figuras 5, 6 e 7 - Batizado, casamento e altar nazistas. (CONWAY, 1968, p. 160)
Alguns líderes no Partido eram francamente anticristãos. Heinrich Himmler, por exemplo, foi grandemente influenciado por Walther Darré33, que acreditava que os teutões medievais haviam se enfraquecido com a conversão ao cristianismo. Os teutões compunham os povos indo-europeus de fala germânica, que habitavam a Europa Setentrional, cuja conversão ao cristianismo iniciou-se no IV século DC, com o trabalho missionário do bispo Úlfilas, que era godo, de origem. Úlfilas traduziu a Bíblia para o idioma gótico, sistematizando o idioma. Era partidário do Arianismo, doutrina proposta e defendida por Arius de Alexandria, no Concílio de Niceia, em 325 DC, segundo a qual Cristo não tem a mesma substância de Deus, o Pai, negando assim a doutrina da Trindade. (SAUSSAYE, 1902, p. 115) Vale ressaltar que neste aspecto em particular a doutrina ariana assemelha-se à cristologia das Testemunhas de Jeová, para quem Cristo
33 Walther Darré serviu como Ministro da Alimentação e Agricultura do Terceiro Reich, e um dos promotores da doutrina Blut and Boden (Sangue e Solo), cuja ênfase era a valorização da etnicidade e da posse e cultivo do solo, celebrando a relação entre as pessoas e terra que elas ocupam.
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não é uma das formas de Deus, mas alguém separado e criado por este. 34(TRATADOS, 1989, p. 16)
Darré suportava uma retomada dos valores religiosos teutônicos, o que atraiu vários grupos, especialmente de jovens, cuja imaginação era ‘incendiada’ em cerimônias e rituais realizados em florestas, longe dos olhos dos pais. Conforme descreve Conway, reunidos ao redor de fogueiras nos acampamentos, não era difícil criar um senso de perigo na escuridão ao redor e invocar um senso de união e confraria para defender a nova Alemanha, reforçada pelos ritmos pulsantes dos hinos nazistas. (CONWAY, 1968, p. 152)
O evento público onde a doutrinação de Hitler e do Partido era mais evidente, sem dúvida eram as cerimônias anuais do partido nazista, realizadas em Nuremberg. (Figura 8) Mais de um milhão de pessoas compareciam e esses eventos, como participantes ou observadores.
Figura 8 - Convenção anual do partido nazista em Nuremberg.35
34 A Encyclopedia Britannica indica apenas as Testemunhas de Jeová como exemplo moderno de cristologia ariana, embora haja divergências em outros detalhes do credo ariano, já que afirmam “adorar o que conhecem”, ao passo que o arianismo afirma que a natureza de Deus é desconhecida. (TRATADOS, 1971, p. 361)
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Representantes de outros países eram encorajados a enviar suas impressões aos seus conterrâneos. As marchas, hinos, desfiles, todos em ordem absolutamente geométrica e cores impressionantes visavam mais do que impactar profundamente toda a sociedade. Construíam também uma demonstração impressionante da eficiência e do apoio incondicionais de todos os segmentos do governo. Todas as cerimônias tinham uma única figura central: Adolf Hitler. (CONWAY, 1968, p. 140)
Esse aparato mítico-litúrgico propiciado pelo Estado, caracterizava o estabelecimento de uma ‘religião civil’, conforme termo inicialmente usado por Jean Jacques Rousseau. (RIVIÈRE, 1989, p. 143) Para Rousseau, a religião civil viabilizaria o contrato social, no qual os cidadãos abrem mão de suas liberdades individuais em troca de conquistarem a liberdade civil. Atuaria como um mecanismo que faz com que os homens se reconheçam como irmãos, impedindo que algo destrua sua sociedade, e que, ao mesmo tempo promova o culto divino à Pátria e às leis. Assim, uma religião civil seria responsável pela “sacralização” do contrato social, pois ela seria:
“uma profissão de fé puramente civil. Cujos artigos compete ao
soberano fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como
sentimentos de sociabilidade, sem os quais é impossível ser bom
cidadão ou súdito fiel. Sem poder obrigar ninguém a crer neles, pode
banir do Estado quem neles não acreditar. Pode bani-lo não como ímpio, mas como insociável, como incapaz de amar sinceramente as leis, a
justiça, e de imolar em caso de necessidade sua vida a seu dever. Se alguém depois de haver reconhecido publicamente esses mesmos
dogmas, comporta-se como se não acreditasse neles, que seja punido de
morte, pois cometeu o maior dos crimes: mentiu perante as leis”.
(ROUSSEAU, 1973, p. 152)
A demanda pelo envolvimento e dedicação do cidadão nos remete uma das definições mais recentes de Bailey para ‘religião implícita’, a saber: comprometimento. Segundo ele explica, comprometimento se refere a “toda a hierarquia de camadas de consciência de que, em qualquer determinado exemplo, pode cair dentro do alcance da expressão”, ou seja, ele pode ser a nível consciente ou subconsciente ou ambos. (BAILEY, 2009, p. 802) Há uma clara semelhança entre o comprometimento dos praticantes de uma religião com seus ritos e crenças, com aquele demonstrado pelos apoiadores de
35 Disponível em http://www.aepeb.be/liege/Croire/connaitre/hitler.htm. Acessado em janeiro de 2016.
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Hitler, durante seu regime. Ainda Bailey explica que um possível sinônimo para a religião implícita, seria “religião civil” – embora este último tenha, na opinião desse autor, uma abrangência menos compreensiva, por se concentrar principalmente nos ritos e ações seculares, que viabilizam, ou reforçam, o ‘comprometimento’ que ele menciona. Segundo Bellah, a religião civil refere-se principalmente a um conjunto de valores e símbolos integrados, sustentados em comum por um grupo de pessoas.
(NESTI, 2005, p. 4401) Este conceito é de interesse para este estudo, por serem os ritos do nazismo tão notórios em sua carga de religiosidade e poder de arrebatamento.
Segundo Rivière, a religião civil “supõe em cada povo a existência de uma dimensão religiosa através da qual ele interpreta sua experiência histórica à luz de princípios éticos que o transcendem”. (Rivière, 1988, p.143). No contexto nazista, é possível identificar claramente vários ingredientes rituais dessa dimensão religiosa. Além dos já citados: Hitler tocava com suas mãos relíquias sagradas e a seguir tocava a bandeira para comunicar-lhe sacralidade. Jurava-se sobre o Mein Kampf, exibia-se bandeiras com sangue de mártires. O crucifixo foi substituído pela foto do Führer
Entoavam-se cânticos afirmando que a bandeira, símbolo fundamental de uma nação, era mais forte que a morte – um dado de caráter fortemente religioso. “Por meio de cada artifício de propaganda ardilosa, o indivíduo era envolto em uma onda de emocionalismo em massa, arquitetada para selar na nação inteira o culto a Hitler, a deidade nazista”, afirma Conway. (CONWAY, 1968, p. 145)
Por exemplo, Rivière cita uma descrição de Jean-Pierre Sironneau das cerimônias realizadas nos congressos do Partido. Observe-se o forte teor religioso da descrição:
"No Congresso do Partido em Nuremberg, exibia-se a 'bandeira
ensanguentada' manchada pelo sangue dos mártires tombados durante
o putsch fracassado de 1923. Durante a cerimônia dita da 'bênção dos
estandartes' no decorrer deste Congresso, Hitler tomava em suas mãos a
relíquia sagrada e tocava a nova bandeira como para comunicar-lhe a
força mágica do antigo fetiche. Depois pronunciava o juramento de
fidelidade aos mortos enquanto os jovens cantavam: 'Nossa bandeira é
mais forte do que a morte ( ... )'. Em 9 de novembro em Munique, dia do
aniversário do putsch de 1923 ( ... ), dois templos da Königsplatz de
Munique abrigavam os dezesseis sarcófagos contendo os restos dos
primeiros mártires do movimento. Uma marcha solene foi realizada da
Königsplatz até a Feldhermhalle, lugar onde haviam sido desfechados os
tiros. Ali, Hitler subiu os degraus cobertos por um tapete vermelho e, de braço erguido, celebrou o sacrifício perfeito das testemunhas do sangue". (RIVIÈRE, 1989, p. 89)
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Rivière cita ainda outra descrição do ritual nazista, e seu efeito, desta vez citando Robert Brasillhach, testemunha ocular e simpatizante do regime:
É noite. O estádio imenso está iluminado apenas por alguns projetores
que permitem imaginar os batalhões compactos das SA vestidos de castanho: no momento exato em que ele (o Führer) entrou no estádio,
mil projetores em torno do recinto iluminaram-se, assestados verticalmente para o céu. São mil pilares azuis que agora o envolvem, como uma janela misteriosa. Serão vistos brilhar durante toda a noite,
do campo, designam o lugar sagrado do mistério nacional e os
organizadores deram a essa assombrosa fantasia o nome de Lichtdom, a catedral da luz. Eis o homem agora de pé em sua tribuna. Desfraldam-se
então as bandeiras. Nem um canto, nem um rufar de tambor... um silêncio sobrenatural e mineral, como o de um espetáculo para astrônomos, num outro planeta. Sob a abóbada rajada de azul até as nuvens, as grandes vagas vermelhas estão apaziguadas. Acredito jamais ter visto em minha vida espetáculo mais prodigioso. (Brasillhach pp. 268, apud (RIVIÈRE, 1989, p. 92))
A ênfase nesse caráter religioso no regime nazista é feita aqui, porque é possível identificá-lo claramente como uma das diferenças ideológicas fundamentais, que estavam na essência do conflito com as Testemunhas de Jeová. Conforme abordado no primeiro capítulo, esse caráter tornaria rigorosamente impossível qualquer espécie de compromisso ideológico, já que representaria, para o grupo, uma negação à sua própria religião e fé. Sua fé e a doutrina nazista, na sua visão, concorrem pelo mesmo espaço. Não seria possível ser Testemunha de Jeová, e, ao mesmo tempo, adotar uma atitude que não fosse de claro repúdio à proposta religiosa-civil nazista. Para elas, seriam posições mutuamente excludentes. Ambos demandam um grau de ‘comprometimento’, para usar a definição de Bailey, que não poderia ser compartilhado. Apoiar o nazismo seria, para elas, uma decisão religiosa, não política. (ELIADE, 1999, p. 77)
Rivière inclusive expõe que esses rituais induziam as massas a um estado quase que de epifania. Segundo ele, “atordoado pelo rufar dos tambores, o compasso das botas, o tinido das armas e a escansão dos slogans, fascinado pelas cores das flâmulas e emblemas, excitado por uma música de metais estridentes, o povo meio em sono hipnótico está então pronto, em unanimidade extática, para deixar-se enfeitiçar pelo mágico supremo. (RIVIÈRE, 1989, p. 93), grifo acrescentado. Testemunhas oculares da época reiteram esse efeito. Uma delas, George Reuter, afirma em sua biografia: “Não demorou muito para que eu mesmo viesse a participar, levado pelo entusiasmo geral. O ar estava repleto de lemas nacionalistas, tais como: “Hoje, a Alemanha é nossa; amanhã,
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o mundo todo será nosso”, e: “A bandeira significa mais do que a morte.” Eu, como adolescente crédulo, os aceitava pelo seu valor aparente.” (REUTER, 1990, p. 17)
Outro testemunho da época do poder religioso do partido nazista sobre os cidadãos é de Ludwig Wurn, membro da SS, que relata:
Nasci na Áustria, em 1920. Meu pai era luterano, minha mãe católica.
Estudei numa escola luterana particular, onde recebi instrução religiosa
de um clérigo. Mas não me foi ensinado a respeito de Jesus Cristo como
Salvador. Dava-se constante ênfase a um “führer [líder] enviado por
Deus”, Adolf Hitler, e a um proposto Império Pan-Germânico. Meu
compêndio mais parecia ser o livro de Hitler Mein Kampf (Minha Luta)
do que a Bíblia. Estudei também o livro de Rosenberg, Der Mythus des 20
Jahrhunderts (O Mito do Século 20), em que ele tentava provar que Jesus Cristo não era judeu, mas sim um loiro ariano! Fiquei convencido de
que Adolf Hitler era realmente um enviado de Deus e, em 1933,
ingressei orgulhosamente na Juventude Hitlerista. Pode imaginar a
minha emoção ao conhecer Hitler pessoalmente. Até hoje me lembro
claramente de como ele me olhou, com aqueles seus olhos
descomunalmente penetrantes. Isso teve um efeito tão profundo em
mim que, ao chegar em casa, eu disse à minha mãe: “De hoje em diante a
minha vida não mais pertence à senhora. Minha vida pertence ao meu
führer, Adolf Hitler. Se eu vir alguém tentando matá-lo, eu me jogarei na
frente dele para salvar-lhe a vida.” (WURM, 1990, p. 11)
Entretanto, o partido não tinha o propósito de abolir a religião formal instituída – pelo menos não a princípio. Não passava despercebido, particularmente a Adolf Hitler, a importância numérica da população religiosa na Alemanha. Conforme mencionado, na década de 30 de cerca de 65.000.000 de alemães, aproximadamente 60.000.000 eram membros registrados em um dos dois maiores grupos religiosos, sendo que cerca de dois terços professavam-se Protestantes. Naturalmente, Hitler tinha interesse político nessa população religiosa. (CONWAY, 1968, p. 5) Por exemplo, quando o General Erich von Ludendorff, que creditava também à Igreja Católica o fracasso alemão na Grande Guerra, incitou Hitler a assumir uma posição antirreligiosa mais clara, esse último respondeu que ‘concordava completamente com ele, mas que precisava tanto dos Católicos da Bavária como dos Protestantes da Prússia para a construção de um grande movimento político’. (REES, 2013, p. 135)
Assim, uma posição ambígua era muito conveniente ao Partido. Permitia que fizesse uso da relação com as Igrejas para alcançar seus objetivos, e controlá-las no que elas representassem alguma ameaça. Por sua parte, as duas igrejas maiores também
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entendiam ter certo poder de negociação. Com a vantagem numérica, seria possível negociar algum tipo de compromisso interessante aos dois lados. Essa possibilidade era reforçada com o fato de Hitler não ter parecido, em princípio, antirreligioso. Ao contrário, muitos religiosos estavam confiantes nele como um guardião contra as forças anticristãs do comunismo, o que lhes assegurava que o partido nazista tinha um fundamento cristão. Isso levou um grande número de devotos a dar seu suporte aos
ideais nazistas. (CONWAY, 1968, p. 7)
Entretanto, a partir de 1930, com a vitória eleitoral do Partido e a publicação de O Mito do Século XX, pelo editor chefe do jornal do Partido Nazista, Alfred Rosenberg, foi ficando mais claro às igrejas que seu relacionamento com o governo seria muito diferente do que se imaginou a princípio. Para muitos no Partido, o livro representava uma espécie de manual ideológico do nazismo, embora o próprio Hitler afirmava não tê
lo lido. (CONWAY, 1968, p. 3) Nele, uma das declarações feita por Rosenberg sobre as igrejas cristãs era a seguinte:
Por causa das loucuras dos galileus, nosso estado foi quase arruinado;
mas agora, graças aos deuses, ele foi salvo. Portanto devemos honrar os deuses e todas as cidades em que ainda há piedade. (...) A grande personalidade de Jesus Cristo, independentemente da forma que poderia ter tomado originalmente, foi distorcida e confundida
imediatamente após a sua morte, com todo o lixo da vida judaica e africana. Roma dominava com grande firmeza e exigia impostos de forma eficiente. Assim, entre as suas populações sujeitas, surgiu o desejo de um libertador e líder dos escravos; daí a lenda de Cristo. Começando na Ásia Menor, este mito Cristo espalhou-se para a Palestina, onde se tornou ligado com os anseios messiânicos dos judeus, e foi finalmente ligado à personalidade de Jesus. Além de suas próprias declarações, foram falsamente atribuídas a ele as palavras e doutrinas dos profetas do oriente próximo e, ironicamente, na forma de uma extensão de antigos preceitos morais arianos (...), dos quais os judeus já haviam se apropriado como parte de seus dez mandamentos. Foi dessa forma que a galileia influenciou todo o oriente próximo.(ROSENBERG, 1930, p. 34)
Vale salientar, porém, que, ainda que visse as religiões majoritárias com interesse e ao mesmo tempo suspeita, o ponto de vista de Hitler era diferente para cada uma delas, e esse ponto de vista influenciou a forma como o relacionamento com elas se conduziria.
Dos católicos Hitler invejava a sólida hierarquia que garantiu sua influência por dois mil anos – para ele muito mais por motivos políticos do que espirituais. A
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infalibilidade do papa, declarada oficialmente como dogma pelo Concílio Vaticano I, em 1870, lhe era muito atraente. O apoio do Papa – ou pelo menos seu silêncio – teria para Hitler um peso inestimável. (CONWAY, 1968, pp. 3, 145) Não obstante, o topo dessa hierarquia ficava em outro país, e em outra pessoa, o que, deste ponto de vista, os tornava rivais.
Por outro lado, os protestantes eram eminentemente alemães, o que os tornava mais acessíveis a seus interesses, e mais de uma vez já haviam atuado como braço do Estado. Faltava a esse grupo, porém, o que sobrava no anterior. Os protestantes não tinham uma hierarquia sólida e única. Ao contrário, as disputas internas, rivalidades e divisões, os tornavam algo desprezíveis aos olhos do Führer. Tudo considerado, porém, os dois grupos tinham elementos que poderiam servir bem aos interesses do Partido. Com uma mensagem que podia ser vista como um aceno de aprovação às religiões, e por enfatizar os aspectos nacionalistas e de um “cristianismo positivo” em sua ideologia, Católicos e Protestantes poderiam ser persuadidos a auxiliar na ascensão do nazismo. Ao mesmo tempo, podiam ver no relacionamento com o nazismo oportunidades de negociar sua sobrevivência. (CONWAY, 1968, p. 4)
Os grupos menores, porém, estavam num contexto muito diferente. Primeiro, porque já eram vistos com suspeita, seja pelo Estado, pela população ou pelos líderes das igrejas majoritárias. Vistos como fanáticos, sem tradição, e tendo poucas ligações históricas com a Alemanha, não eram vistos como tendo algo valioso a oferecer ao Partido e à sociedade. Ignorados, a princípio, por razões práticas, e sem poder de barganha, para garantir sua sobrevivência precisariam eventualmente adotar uma das três possibilidades, ou algum nível de combinação entre elas: ganhar o favor do Partido através de eventuais simpatizantes no governo, operar às ocultas ou resistir a todo custo. (KING, 1982, p. 25) Ademais, devido à proteção legal relativamente inferior com que contavam, e ao fato de terem sua origem normalmente fora da Alemanha, muito cedo se tornaram alvo de suspeitas. (CONWAY, 1968, p. 196)
Seja para as religiões majoritárias ou minoritárias, cedo o Partido organizou-se para dar atenção a esse campo. Afinal todas as igrejas haviam de algum modo falhado em eliminar da Alemanha a causa básica apontada por Hitler para todos os problemas alemães: os judeus. E haviam falhado nessa missão por um motivo: estavam divididos
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em sua lealdade. Apenas os que prestassem lealdade única à pessoa de Adolf Hitler como o messias salvador estariam aptos para a enorme tarefa de reconstruir a Alemanha. (CONWAY, 1968, p. 144)
Para manter o controle sobre as religiões, o Partido aparelhou-se e adaptou seus mecanismos. Quando do desenvolvimento do Partido Nazista, Hitler valeu-se não só da ideologia para conquistar sua ascensão, mas também da força. Inicialmente foram criadas as já mencionadas Divisões de Assalto, as Sturmabteilung, abreviado para SA, também conhecidos como “camisas-pardas”. Não se tratava de uma organização militar propriamente, mas de uma milícia que espalhava terror entre os opositores do partido, por meio de espancamentos, tortura e morte. Era composta por arruaceiros e desempregados, sendo que esses últimos não faltavam na época. Seu cofundador era Ernst Röhm, que prestou seu apoio a Hitler desde o putsch da cervejaria. A SA perseguiu ferozmente as Testemunhas de Jeová.
Conforme mencionado, porém, a SA era um grupo semi-independente, e que nem sempre correspondia aos ideais de Hitler. Ele não deixara de utilizá-los à medida em que as ações do grupo favoreciam sua ascensão, mas tinha consciência de que eram “um bando de combatentes rudes”. (EVANS, 2011, p. 599) O líder da SA, Röhm, não era um político hábil, e contava com muitos inimigos importantes, como Himmler, Goebbels e Göring, todos muito próximos de Hitler. A homossexualidade de Röhm era constantemente trazida ao debate. Embora Hitler inicialmente não desse grande importância à vida privada de Röhm, a situação mudou à medida em que ficou claro para ele que Röhm tinha sua própria agenda, discordando publicamente de Hitler em várias ocasiões, além dos boatos de que Röhm estaria planejando um golpe. Himmler, então comandante de um grupo menor, a SS, que era uma subdivisão da SA via no embate entre Hitler e Röhm uma oportunidade para sua projeção, reforçou esses boatos. Não se sabe até que ponto Hitler foi influenciado pelas manobras de Himmler, a o fato é que Hitler pessoalmente declarou a Röhm que ele estava preso, e, posteriormente ordenou sua execução na prisão, na ‘Noite das Facas Longas’, em 1o de julho de 1934. Segundo Evans ocorreram 85 assassinatos sem julgamento e mais de mil prisões nessa noite. (2011, p. 59)
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Como consequência, as fileiras das SA diminuíram rapidamente, e as SS (Schutzstaffel – tropas de proteção) rapidamente assumiram todas as suas funções. Diferentes das SA, os membros das SS seguiam o padrão estabelecido por seu líder Himmler. As SS eram consideradas uma tropa de elite e a pureza racial era um dos requisitos para a admissão em suas fileiras. Seu lema era “Minha honra chama-se lealdade”, e tornou-se passagem obrigatória de todas as vias de acesso ao poder, infiltrando-se e com o tempo controlando outras instituições, entre elas a Gestapo (Geheime Staatspolizei, Polícia Secreta do Estado), comandada por Heinrich Müller e a SD (Sicherheitsdienst, Serviço de Segurança), sob o comando de Reinhard Heydrich. (FEST, 2005b, p. 556) Tanto a Gestapo como a SD dedicaram muitos esforços na repressão das seitas minoritárias, em particular às Testemunhas de Jeová, usando vários métodos, conforme será relatado adiante.
Além dessas, o partido nazista estabeleceu também outras organizações com o intuito de específico de inculcar a doutrina e treinar a população jovem. Hitler não acreditava na eficiência do sistema educacional da Alemanha. Por isso, a partir de 1933, unificou a direção das escolas no Ministro da Educação do Reich. Os currículos foram alterados para adequarem aos princípios nazistas. Todos os professores, da educação infantil até a universidade, foram treinados e eram obrigados a jurarem obediência a Hitler e a associarem-se ao Partido. Os recalcitrantes eram demitidos.
E educação dos jovens continuava fora da escola, na organização dos Jovens Hitleristas. Insipiente nos anos iniciais do partido, atingindo cerca de 100.000 jovens até 1932, seu número aumentou explosivamente para 2.300.000 em 1933, após a posse de Hitler como chanceler. Grande parte desse número veio com a incorporação de outros grupos de jovens, como o Grupo da Juventude Evangélica, protestante, de 700.000 membros e o Movimento de Fé dos Cristãos Alemães, e, mas adiante, da Associação da Juventude Católica. O responsável perante Hitler pelo treinamento dos jovens era Baldur von Schirach, que aderira o nazismo aos 18 anos, e é descrito por Shirer como um “tolo jovem de vinte e nove anos, que escreveu versos sentimentais em louvor a Hitler (“esse gênio que toca as estrelas”) e seguiu Rosenberg no seu estrambólico paganismo, e
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Streicher36 em seu antissemitismo virulento e se convertera em ditador da juventude do Terceiro Reich.” (SHIRER, 1962, p. 377)
A educação nas doutrinas nazistas começava aos seis anos para os rapazes, quando ele recebia um livro no qual seu progresso de aprendizado era anotado. Aos dez anos, depois de vários testes de atletismo e acampamentos, ele prestava o seguinte juramento:
Diante desta bandeira de sangue, que representa nosso Führer, juro
devotar todas as minhas energias e forças ao salvador de nossa pátria,
Adolf Hitler. Estou disposto a dar minha vida por ele, com a ajuda de Deus.
Dos quatorze aos dezoitos anos, os jovens deveriam participar da Juventude Hitlerista (Hitlerjugend), que para todos os fins era uma organização paramilitar, na qual os jovens recebiam treinamentos sistemáticos em ideologia nazista, esportes e ações militares. Nos fins de 1938, a Juventude Hitlerista somaria quase 8 milhões de membros e a participação se tornou obrigatória em 1939. Os que se sobressaiam eram escolhidos para as universidades, serviço público e postos de direção no Partido. As moças constituíam a União das Jovens Alemãs (Bund Deutcher Mädel), na qual o treinamento enfatizava principalmente seu papel no Terceiro Reich: serem mães sadias de filhos sadios. (SHIRER, 1962, p. 378)
Os membros da Juventude Hitlerista contribuíam com frequência com a SA, Gestapo e SS na delação de quaisquer ações consideradas suspeitas, inclusive de seus pais, ou em manifestações públicas e desfiles. (CONWAY, 1968, p. 127), (MAZOWER, 2013, p. 365)
Depois dessa consideração sobre a ideologia nazista no que se referia à religião, bem como sobre seu aparelhamento para lidar com o que consideraria ameaças
36 Julius Streicher foi o fundador e editor do tabloide sensacionalista Der Stürmer (O Atacante) caracterizado por manchetes berrantes e fortes ataques aos judeus, com caricaturas racistas e histórias fabricadas sobre assassinatos rituais e perversões sexuais. Por seu caráter promíscuo, era visto com repugnância até por outros membro do Partido. O antissemitismo de Streicher, porém, agradava a Hitler (EVANS, 2010, p. 245)
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causadas por motivações religiosas, é interessante para esta análise verificar também como as principais religiões buscaram estratégias para a manutenção de seus preceitos, ou, no pior caso, para sua sobrevivência.
2.3 A Igreja Protestante e o Nazismo
Por sua própria origem histórica, as igrejas protestantes viam-se como pilares da cultura e sociedade alemãs, com uma longa história de lealdade ao Estado, respaldada, mais recentemente, pela ativa participação na Primeira Guerra, quer como soldados combatentes, quer por meio das orações pela vitória nacional. Essa postura refletia de modo explícito a do próprio fundador do movimento, Martinho Lutero, que era manifestamente defensor da obediência absoluta à autoridade política. (SHIRER, 1962, p. 352), (JOHNSON, 2001, p. 369)
O maior grupo protestante na Alemanha na década de 30 era a Igreja Evangélica Alemã, composta por vinte e oito igrejas regionais, que incluíam as tradições teológicas mais importantes: a Luterana, a Reformada (ou Calvinista) e a Unificada. A esse grupo estavam filiados 62,2 % da população alemã, o que por si só já era um motivo para Hitler ver aí uma fonte de apoio importante. Assim, seu apelo foi deliberadamente dirigido a valores compartilhados, como o nacionalismo, e a necessidade de uma liderança que salvaguardasse os ‘valores cristãos’ e o ‘bem-estar’, conforme ele postulou no ambíguo ponto 24 de seu programa do partido, já mencionado, assim como um guardião contra o ateísmo comunista. Essa retórica ocasionou que o clero protestante em geral recebeu muito bem a ascensão de Hitler à chancelaria, em 1933. (CONWAY, 2001, p. 494) Entre eles estava o pastor luterano Martin Niemöller, que havia sido condecorado com a Cruz de Ferro na Primeira Guerra Mundial, quando serviu como comandante de submarino, e posteriormente se oporia ao regime. (SHIRER, 1962, p. 353) A grande cerimônia de celebração da chegada de Hitler ao poder foi coordenada por Goebbels, e ocorreu na histórica Igreja da Guarnição, em Potsdam, em 21 de março de 1933. Em frente à Igreja, Hitler cumprimentou teatralmente o presidente Hindenburg. (SHIRER, 1962, p. 295) (Figura 9)
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Figura 9. Hitler cumprimenta o presidente Hindenburg na cerimônia de posse, realizada na Igreja Protestante da Guarnição, em Potsdam. Fonte: Site da Rádio Deutsche Welle37
Entretanto, a fragmentação do grupo, causada inclusive pelas diferentes tradições nele presentes, certamente representava uma fragilidade aos olhos de Hitler. Durante a república de Weimar, essas igrejas fizeram alguns movimentos no sentido de buscar uma liderança comum, mas Hitler atuou mais fortemente nessa direção assim que chegou à chancelaria. Em 14 de julho de 1933 tornou mandatório que essas igrejas se organizassem numa Igreja Protestante do Reich (ou Igreja Evangélica Alemã) sob um “bispo do Reich”. (KING, 1982, p. 8) O partido pressionou-as a realizarem eleições, no que foi apoiado pelo grupo protestante Cristãos Alemães (Deutsche Christen). O candidato apontado pelo partido foi Ludwig Müller, capelão e amigo pessoal de Hitler e seu conselheiro em assuntos da Igreja Protestante, visto como muitos apenas como um marionete do governo. O candidato das igrejas era Friedrich von Bodelschwingh. Com amargas disputas internas, e com os apoiadores de Bodelschwingh intimidados pelas SA e a Gestapo, Müller ganhou as eleições, especialmente com o apoio do grupo Cristãos Alemães, que haviam se tornado francos apoiadores do arianismo e do Estado autoritário e oponentes a vários ensinos tradicionais protestantes, “chegando até a defender a discriminação dos judeus”. (MINERBI, 2009, p. 45)
37 Site: http://www.dw.com/pt/o-dia-de-potsdam-e-a-encena%C3%A7%C3%A3o-nazista/a-16677538, acessado em dezembro de 2015
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Para fazer frente a essa corrente e à interferência do Partido na soberania da Igreja, formou-se a Liga Emergencial de Pastores (Pfarrernotbund), da qual originou-se a Igreja Confessional (Bekennende Kirche), sob a orientação espiritual do pastor Wilhelm Niemöller, já em crescente conflito com o governo. Dois grupos rivais, portanto, afirmavam constituir legitimamente a igreja protestante, o que tornou evidente que Müller, e por consequência Hitler, fracassaram em unificar as igrejas protestantes. Alguns pastores extremistas, como Reinhardt Krause, que propôs o abandono do Velho Testamento e a revisão do Novo ‘com a doutrina de Jesus correspondendo inteiramente às exigências do nazismo’ só fizeram afastar os protestantes mais moderados e aumentar as disputas. (SHIRER, 1962, p. 354) Hans Kerrl, protestante, constituído Ministro do Reich para Assuntos da Igreja, assumiu as funções de Müller, e defendia
ostensivamente que o ‘cristianismo positivo’ proposto pela ideologia nazista poderia ser conciliado com a manutenção da divisão protestante Cristãos Alemães, e a aniquilação da Igreja Confessional. (CONWAY, 1968, p. 131)
Em 1936 Niemöller, que já era tido como o principal porta-voz da resistência protestante ao nazismo, dirigiu um memorando a Hitler manifestando-se contra as tendências anticristãs do regime, denunciando o antissemitismo do governo e reclamando que se pusesse termo à interferência do Estado nas igrejas. Como resultado, em 1937 a Igreja Confessional foi proscrita e declarada ilegal pelo governo, com Niemöller e mais cerca de 800 outros pastores presos. Embora condenado a 7 meses de prisão, Hitler ordenou que ele permanecesse no campo de concentração, o que realmente aconteceu, primeiro no de Sachsenhausen, depois no de Dachau, de onde foi libertado apenas em 1945. (CONWAY, 1968, p. 212)
Mesmo a escalada de violência contra os judeus e a invasão da Polônia, em 1939, não foram suficientes para que ações mais incisivas da liderança protestante fosse tomada. Ao contrário, conforme registra Dietrich Bonhoeffer, pastor Luterano e claramente opositor do regime desde sua formação, quando da declaração de guerra, as igrejas luteranas proclamaram publicamente:
"Desde ontem o povo alemão foi chamado para lutar pela terra de seus
pais, a fim de que o sangue alemão pudesse tornar a se unir ao sangue
alemão. A Igreja Evangélica Alemã se mantém em perfeita solidariedade
com o destino do povo alemão. A Igreja acrescenta às armas de aço as
armas invisíveis da palavra de Deus. Unimo-nos, assim, nesta hora, ao
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nosso povo, numa prece pelo nosso FUEHRER e pelo REICH, por todas
as forças armadas e por todos aqueles que cumprem o seu dever com a
Pátria". (BONHOEFFER, 2011, p. 277)
As vitórias alemãs foram saudadas, o aumento de poder da Gestapo foi justificado como uma necessidade da guerra, e as baixas como uma consequência inevitável dela. Não havia na ideologia protestante substância para sustentar atitudes contra o antissemitismo ou para a adoção de uma posição contra o governo. “Do mesmo modo que em 1914, a explosão da guerra em 1939 demonstrou que a lealdade nacional pesou mais que a solidariedade cristã”. (CONWAY, 2001, p. 497)
Conforme relatado por Leo Stein, companheiro de cela de Niemöller, com o tempo ele se deu conta do erro em apoiar o partido nazista a princípio, o que talvez reflita o sentimento de vários outros líderes protestantes.
“Eu realmente acreditava", Niemöller continuou, “dado o
antissemitismo generalizada na Alemanha na época, que os judeus
deveriam evitar aspirar aos cargos governamentais ou assentos no
parlamento (Riechstag.) Havia muitos judeus, especialmente entre os
sionistas, que tomaram uma posição similar. As garantias de Hitler me
satisfizeram no momento. Por outro lado, eu odiava o crescente
movimento ateísta, que foi fomentada e promovida pelos social
democratas e os comunistas. Sua hostilidade contra a Igreja me fez fixar
minhas esperanças em Hitler por um tempo. Eu estou pagando por esse
erro agora, e não somente eu, mas milhares de outras pessoas como eu.”
(STEIN, 1941, p. 284) Tradução do autor.
Niemöller expressou esses sentimentos em um verso que se tornou famoso, e vale ser reproduzida nesse contexto:
“Quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal,
eu não era comunista.
Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque,
afinal, eu não era social-democrata.
Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu
não era sindicalista.
Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era
judeu.
Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse”
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Há mais de uma paráfrase do poema de Niemöller. O seu ponto era que “os alemães – em particular, os líderes das igrejas protestantes – tinham sido cúmplices através de seu silêncio na prisão, perseguição e assassinato de milhões de pessoas pelos nazistas.” (NIEMÖLLER, 2015). Nas suas próprias palavras:
Preferimos ficar em silêncio. É certo que não somos isentos de culpa; e
pergunto-me vez após vez o que teria acontecido se 14.000 ministros evangélicos e as comunidades evangélicas, por toda a Alemanha, tivessem defendido a verdade com suas próprias vidas em 1933 ou 1934, enquanto ainda havia uma possibilidade? Se tivéssemos
simplesmente dito para Herman Göring que não era justo jogar 100.000 comunistas em campos de concentração para morrer? Eu posso
imaginar que 30 a 40 mil cristãos evangélicos teriam sido decapitados, mas eu também posso imaginar que teriam, assim, salvo de 30 a 40 milhões de vidas - este é o preço que temos de pagar agora.
(NIEMÖLLER, 1947, p. 17) tradução
Conway analisa que as poucas vozes protestantes que se levantaram não representaram ameaça considerável ao Partido, ou não mobilizaram a população protestante, porque, na essência, não havia muito mais do que o interesse em manter a autonomia do grupo. A raiz de sua oposição não era à política racial do Reich, mas sim essencialmente à interferência do Partido nos assuntos da Igreja. (CONWAY, 2001, p. 497) (KING, 1982, p. 9)
A maioria dos pastores protestantes submeteu-se ante o terror nazista e com eles os membros das igrejas. Um dos mais proeminentes, o Bispo August Marahrens, de Hannover, declarou, em 1937: “A concepção de vida nacional-socialista é uma doutrina nacional e política que determina e caracteriza a natureza do homem alemão. Como tal e igualmente obrigatória para os cristãos alemães”. Em 1938 ele obrigou todos os pastores de sua diocese a juraram fidelidade ao Führer, e, como consequência a maioria do clero protestante fez o mesmo juramento. (GERLACH; BARNETT, 2000, p. 127)
(SHIRER, 1962, p. 357) Salvo poucas e isoladas exceções, não houve um ataque significante ao antissemitismo nazista. Uma dessas exceções dignas de nota foi o já citado pastor Dietrich Bonhoeffer, cofundador da Igreja Confessional, teólogo e ativista que opôs-se a Hitler desde o início. (CONWAY, 1968, p. 338) Foi um dos poucos que não apoiaram a desvalorização do Antigo Testamento da Bíblia, e reconhecia o débito das igrejas cristãs com o judaísmo. (LAQUEUR; BAUMEL, 2001, p. 497) Bonhoeffer foi enforcado em 9 de abril de 1945 no campo de concentração de Flossenbürg por seu
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envolvimento em vários movimentos de resistência ao nazismo. (EVANS, 2013, pp. 724, 729, 787)
Com efeito, os dois terços da população alemã composta de protestantes, salvo exceções pontuais, não tinham em seus líderes uma motivação clara opor-se ideologicamente ao regime. Conforme analisa Shirer, “um povo que havia entregado tão facilmente suas liberdades política, cultural e econômica, não iria, com exceção de relativamente poucos, morrer ou arriscar-se à prisão para preservar a liberdade religiosa. O que efetivamente entusiasmava os alemães na década de trinta eram os êxitos retumbantes de Hitler em providenciar empregos, criar prosperidade, restaurar o poder militar da Alemanha e marchar de triunfo em triunfo em sua política exterior.” (SHIRER, 1962, p. 357)
Assim, essa análise do movimento protestante face à ideologia nazista demonstra que tanto o lado mais conservador, representado pela Igreja Confessional, como o mais liberal, dos Cristãos Alemães, apesar das divergências internas, limitaram sua oposição ao partido naquilo que esse último representava de ameaça à sua autonomia, não aos seus princípios teológicos. (KING, 1982, p. 10) De fato, poucos deles se detiveram para refletir nas propostas do partido, sistematizadas por Rosenberg, que, em última análise buscava, na verdade, a substituição de quaisquer ideologias pelas ideologias nazistas e a justificação do extermínio dos judeus e quaisquer oponentes ao regime. (SHIRER, 1962, p. 358)
Conforme conclui Conway, por conta dessa ‘indisposição’ de tomarem uma posição mais intransigente contra o nazismo, muitos pensadores protestantes pós guerra, com a vantagem de uma visão de maior perspectiva, acreditam que essas igrejas poderiam ter feito mais para evitar que o nazismo fizesse mais vítimas. (CONWAY, 2001, p. 499)
2.4 A Igreja Católica e o Nazismo
No século VIII, no início da dinastia Carolíngia, Bonifácio de Mogúncia (675 – 754), um monge beneditino inglês, estabeleceu o catolicismo na Germânia, sendo por isso chamado o “apóstolo dos germanos” e patrono da Alemanha católica. (NEIL, 2005, p. 1017) Com a reforma de Lutero, em 1517, as regiões norte e leste concentraram a maior
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parte dos apoiadores do protestantismo, ao passo que o sul e o oeste concentraram os católicos. Não foram poucos os conflitos entre católicos e protestantes, e entre o catolicismo e o estado alemão, e, sob Bismark, esse conflito acentuou-se com o movimento Kulturkampf (Luta pela Cultura). Ávido por subordinar todos os elementos da sociedade alemã ao controle estatal, Bismark, em 1872, acabou por proibir a atuação da igreja católica na educação e em quaisquer discussões de Estado. (CORNWELL, p. 27)
Em 1887, porém, Bismark estava desgastado politicamente, e em busca de aliados. Assim, aceitou que o novo papa, Leão XIII, persuadisse alguns membros do partido de centro católico apoiassem Bismark, no parlamento, em troca da anulação das leis de 1872. (JOHNSON, 2001, p. 564)
Entretanto, as brechas causadas pela Kulturkampf eram bastante profundas. A acusação de que os católicos não eram verdadeiros alemães, e que eram hostis ao espírito germânico deixara uma marca indelével na comunidade católica. Havia portanto uma ânsia do clero católico de reforçar seus laços com o Estado com vistas a garantir sua permanência e liberdade de atuação na Alemanha. A oportunidade para dar um passo decisivo nessa direção veio com a Primeira Guerra Mundial. Nenhum grupo excedeu o clero católico em termos de retórica patriótica. O cardeal Michael von Faulhaber, Arcebispo de Munique, afirmou que a guerra para vingar o assassinato em Sarajevo entraria para histórica como o “protótipo da guerra justa”. (JOHNSON, 2001, p. 585).
Esse esforço de reafirmação de protagonismo prosseguiu durante a República de Weimar e, de fato intensificou-se, à medida que o partido nazista conquistou o poder. (KING, 1982, p. 13) Conforme o historiador Paul Johnson pondera:
Foi essa ânsia continuada por não se expor à acusação de ser anti
germânica que levou a Igreja Católica a condescender com Hitler e os
nazistas. Tinha pavor de uma nova Kulturkampf . Havia um temor
partilhado pelos bispos alemães, pelo núncio papal, arcebispo Pacelli, e
pelo próprio Vaticano, de que uma segunda campanha, executada com
muito mais ferocidade – e talvez por muito mais tempo – que a primeira,
conseguiria de fato destruir a Igreja Católica na Alemanha. Temiam que
Hitler criasse uma igreja separatista, subordinada ao Estado, e que a
imensa maioria dos católicos (e do clero) alemães aderisse a ela,
expondo, desse modo, a fragilidade da lealdade ao papado, solapando
todo o conceito de triunfalismo populista e inflingindo danos
incalculáveis ao catolicismo internacional por toda parte. (JOHNSON,
2001, p. 586)
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O conjunto de ações tomadas pela Igreja Católica e seus representantes durante a ascensão do Terceiro Reich para alcançar esses objetivos é bastante complexo, e vai além do escopo dessa pesquisa. Entretanto, para os objetivos desse estudo é bastante emblemático o estabelecimento da Concordata entre o Partido Nazista e o Vaticano, que será apresentado sumariamente.
Conforme visto, após o incêndio do Parlamento, em 27 de fevereiro de 1933, Hitler conseguira convencer o presidente Hindenburg emitir o Decreto de Emergência, que, para todos os fins práticos, eliminava o estado de direito. Apesar disso, o partido nazista ainda não conseguira a maioria no parlamento. Assim, Hitler decidiu dar um passo adiante e propor ao parlamento a Lei de Concessão de Plenos Poderes, ou Lei Habilitante (Ermächtigungsgesetz), que atribuía a ele plenos poderes ditatoriais. Para sua aprovação, entretanto, seria necessária a aprovação de dois terços do parlamento, e o partido de Hitler junto com seu coligado, o Partido Popular Nacional Alemão, formavam apenas 52%.
Até então, não havia motivos aparentes para Hitler obter o apoio do Partido do Centro, católico, que, até essa ocasião, havia se mantido firme, junto com a hierarquia católica, contra os avanços do partido nazista. Considerando que o Partido do Centro representava uma enorme parcela da população, Hitler não teria interesse político em confrontá-los. Ao contrário, o mais interessante para ele seria, de algum modo, obter seu apoio. Os relatos da sequência de eventos que levaram à obtenção desse apoio são controversos e seguem sendo objeto de estudo. (LEWY, 2009, p. loc. 982) Mas de concreto é possível afirmar que foi muito providencial para os fins políticos de Hitler, a atuação do então Secretario de Estado do Vaticano, Eugênio Pacelli. (CORNWELL, p. 150)
Há tempos Pacelli buscava firmar uma concordata com a chancelaria alemã para a obtenção de garantias para a atuação da Igreja Católica na Alemanha. Uma negociação infrutífera havia sido tentada com o chanceler Brüning, deixando um considerável mal estar entre o Vaticano e a chancelaria alemã.
O próximo chanceler, Von Papen, no entanto, tinha uma posição diferente da de Brüning. Ele próprio era do Partido do Centro, Católico, e estava ciente das crescentes
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manifestações antinazistas do clero católico. Porém, como homem de direita, era claro para ele que uma coalizão com o Partido Nazista seria sua melhor chance de sobrevivência. Alguns autores apontam que talvez seu objetivo velado teria sido exercer um certo controle sobre Hitler. Independentemente de seus reais objetivos, não foi difícil retomar a negociação da Concordata, muito embora os interesses de Pacelli e de Hitler se alinhassem, mas com objetivos diferentes. (CORNWELL, p. 150)
Com as negociações para a Concordata ainda em andamento, Pacelli convocou os bispos alemães para a Conferência em Fulda, de 30 de maio a 1 de junho de 1933. Uma das decisões dos bispos foi a dissolução do Partido do Centro que, conforme afirmou o próprio Von Papen, visava pavimentar o caminho para a Concordata. As ações antissemitas do governo não foram mencionadas. Quanto ao suporte aos objetivos de Hitler, a declaração foi:
“Nós, bispos alemães estamos longe de subestimar ou mesmo impedir
esse despertar nacional. Nossa nação germânica, após anos de servidão,
desrespeito por nosso direito nacional, além de vergonhosa
interferência, deve receber novamente um lugar de liberdade e honra na família das nações, digno de seu tamanho numérico, habilidade cultural e desempenho.” (LEWY, 2009, p. loc. 1408) Tradução do autor.
A declaração acima foi tornada pública e teve grande repercussão na imprensa. Conforme pondera Cymet, os leitores não “achariam difícil abraçar de coração o mundo do nacional-socialismo”. (CYMET, 2010, p. 59) Ou, nas palavras de Johnson, “o efeito líquido foi ajudar os nazistas e inclinar os eleitores católicos a apoiá-los”. (JOHNSON, 2001, p. 537)
De quem teria sido a iniciativa de firmar um acordo, de Hitler ou da Santa Sé, é assunto controverso. Porém, na análise de Lewy e Evans, a sucessão de eventos indica que a atuação do presidente do Partido do Centro, o prelado jesuíta Monsenhor Ludwig Kaas, foi fundamental. (2009, p. loc. 1009) (EVANS, 2010, p. 137) Pacelli já havia responsabilizado Kaas pelo fracasso da tentativa de estabelecer a Concordata com Brüning. Sua proximidade ao chanceler Von Papen, assim como os frequentes contatos com o Vaticano, indicam que ele foi um personagem chave na articulação da Concordata. (CONWAY, 1968, p. 18)
Ademais, em eu diário consta a seguinte afirmação:
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No interesse da nação, bem como do ponto de vista do catolicismo
alemão, eu ficaria muito feliz se a diretriz escolhida por estas
declarações continuem a ser seguidas. Nada poderia contribuir mais
para a consolidação interna do regime autoritário. Por isso, e por
convicção pessoal, escolhi também uma atitude de cooperação positiva.
Seria uma fonte de satisfação sincera para mim se eu pudesse prestar
alguns bons serviços para o alívio das tensões, em particular na área das
políticas culturais e religiosas. Estas tensões têm existido por um longo
tempo e, provavelmente, poderiam ser consideradas finalmente eliminadas apenas quando um acordo for alcançado com base em
disposições incontestáveis. (LEWY, 2009, p. loc. 1036) Tradução do
autor.
Quaisquer que tenham sido as articulações, o fato é que Pacelli negociou com Hitler o apoio do Partido do Centro Católico, com uma representação de 13,9%. Com esses votos, e mais os dos parlamentares indecisos, pressionados pela presença ostensiva da SA no Parlamento, Hitler venceu as eleições de 5 de março, obtendo maioria absoluta no parlamento. Em 23 de março foi aprovada a Lei Habilitante, na prática instaurando o regime ditatorial, com a concentração de todo o poder em suas mãos. Em troca, Hitler assinou a Concordata com o Vaticano em 20 de julho de 1933. (CONWAY, 1968, p. 17) (Figura 10)
Figura 10. Assinatura da Concordata entre o Vaticano e o Partido Nazista. Da esquerda para direita: Monsenhor Ludwig Kaas, Vice-chanceler Von Papen, subsecretário Giuseppe Pizzardo, Secretário de Estado Eugenio Pacelli, substituto Alfredo Ottaviani (futuro Cardeal), Ministro do Interior Rudolf Hermann Buttman, substituto Giovanni Montini (futuro Papa Paulo VI). Fonte: (SPIEGEL, 2013, fig. 1)38
38 Disponível em http://www.spiegel.de/einestages/80-jahre-reichskonkordat-pakt-zwischen-vatikan und-ns-regierung-a-951201.html. Acessado em janeiro de 2016.